Pular para o conteúdo principal

9 meses



            Tudo começou há quatro anos quando ela dormiu em casa pela primeira vez. É incrível o quanto, às vezes, pequenas coisas que fazemos acabam tendo grandes repercussões lá na frente. Tudo acontece por um motivo, mesmo que você não entenda na hora. Ela disse que tinha gostado da minha casa; que era acolhedora e confortável, e que ela se mudaria para lá um dia. Eu dei uma risada desconsertada – imagine só dividir o mesmo espaço com alguém depois de anos trabalhando para transformar aquela quitinete de três peças em um lar digno de receber visitas e desmaiar de cansaço ou de bêbado em dias mais difíceis.
            Ela deu uma risada impensada – imagine só sair de casa de verdade para ir morar ali, tão longe de tudo que lhe era familiar até então para começar de novo em outro lugar, com outra pessoa tão diferente dela. Eis que surgiu o porém. Nós não éramos tão diferentes assim. A verdade é que em meados de quatro anos atrás, aconteceu que tudo o que eu mais queria na vida, entre o estresse do trabalho e a confusão do primeiro ano da faculdade, era simplesmente ser entendido.
            Eu queria um abraço, queria que alguém dissesse que iria ficar tudo bem. Queria que alguém visse além do sorriso pronto, da risada desconcertada e do olhar irônico que escondida muito mais tragédia do que minha comédia da vida pública parecia despistar. E aconteceu que eu a encontrei. E eu me lembro como se fosse ontem, porque naquele mesmo dia naquele mesmo ano, eu ainda escrevia como se não houvesse amanhã – apesar de acreditar muito que havia.
            E depois de passar um tempo com ela enquanto ela esperava pelo ônibus depois da aula para voltar para casa, a gratidão que eu tive por finalmente sentir que apesar dos apesares, alguém entendia tudo aquilo que me passava na cabeça mas era incapaz de compartilhar com outros meros mortais, eu tive que voltar para casa também e escrever sobre como era bom ser entendido, que havia muito mais vida em mim, nos outros e em toda parte do que eu poderia imaginar, e que a felicidade, apesar de aleatória, pode se tornar mais constante do que eu poderia conceber.
            Nós mantivemos contato através de conversas inesperadas entre outras amizades e aulas que tomavam o nosso tempo, mas de alguma forma sempre parecia que ela cruzava meu caminho na hora certa – exatamente quando eu menos esperava, mas quando eu mais precisava. E toda vez que ela precisava de um pouso em Cascavel, ela entrava em casa e dizia a mesma coisa: eu vou morar aqui um dia. E se não me engano, certa vez até disse a ela: você já mora, só não dorme aqui todos os dias. Nunca subestime o destino.
            Quatro anos depois, ela precisou de um pouso um pouco mais demorado. Só alguns dias enquanto ela procurava por outro lugar para ficar, algo permanente dessa vez. Tudo bem, fique à vontade. Este é o seu quarto, este é o seu banheiro, a chave para esquentar o chuveiro fica aqui, cuidado com o pé quebrado da geladeira, a porta precisa ser empurrada com força pra fechar, pode deixar a louça ali que eu lavo depois, tem toalhas limpas na cômoda... Precisa de mais alguma coisa? Não? Ok. Boa noite.
            Nenhum de nós realmente imaginava que alguns dias não seriam mesmo alguns dias, mas quis a vida – ou o destino, as coincidências ou a Rede Globo, seja lá em qual Deus você acredita – que conforme o tempo passou, ela simplesmente foi ficando. E ficando, e ficando... Acho que foi só um mês depois que nós percebemos que não estávamos mais lidando com algo temporário. Quatro anos atrás ela veio, ela viu, e quatro anos depois ela se mudou para cá. Simples assim.
            Não, não foi fácil dividir o meu espaço com alguém de novo, por mais que este alguém tenha trazido mais vida do que eu poderia imaginar que era possível para dentro do apartamento. Por anos eu me vangloriei por ter transformado minha casa em um lar, enquanto ela transformou as pessoas que transitavam neste lar em uma família, começando por nós dois. E entre bilhetinhos debaixo da porta, tererés durante a tarde, desabafos na sacada, brindes com uísque e coca-cola, xícaras com leite quente e bolachas para acompanhar, trilhas sonoras similares e tudo mais que aos poucos criamos juntos, aconteceu que nove meses depois ainda estamos aqui. Na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, no uísque e no Roacutan, nas crises e entre relacionamentos, com cada vez mais amigos nos visitando e enchendo nossa geladeira, até que o aluguel nos separe.
            Eu não sei o que vai acontecer com a gente daqui quatro anos, mas de uma coisa eu tenho certeza: se esses nove meses foram como as alegrias e dores de um parto, nasce aqui uma amizade para o resto da vida. Porque você se tornou inesquecível, independente se o Existencialismo te levou a escolher isso ou não. Com as nossas essências parecidas, nós agora existimos juntos, e não nos vejo diminuindo o ritmo tão cedo. Quando completamos dois meses, eu disse que queria que você ficasse. Nove meses depois, eu quero que você continue.

Comentários

  1. "Este é o seu quarto, este é o seu banheiro, a chave para esquentar o chuveiro fica aqui, cuidado com o pé quebrado da geladeira, a porta precisa ser empurrada com força pra fechar, pode deixar a louça ali que eu lavo depois, tem toalhas limpas na cômoda... Precisa de mais alguma coisa? Não? Ok. Boa noite. "

    Li, ouvindo a voz do Tio Marcio falando!

    ResponderExcluir
  2. Oi Igor.. lindo texto, hein! Me identifiquei com a parte que o Diego citou acima.. também sou dessas uoieuieuioee

    ResponderExcluir
  3. E eu que achava que você fosse sempre ser aquele guri hiperativo, hiperinteligente, desenhando quadrinhos. Tô ficando velho!!!! Agora lendo esse texto tão gostoso, tenho certeza de que o tempo passou, não sei se você ainda é aquele guri hiperativo,, mas aquele guri hiperinteligente se tornou um cara hiperinteligente, masculamente doce (não me lembro onde li essa expressão, mas ela me veio enquanto lia seu texto). Um abração. Cesar

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Os 5 estágios do Roacutan

            Olá. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sou um alcoólatra. Muito pelo contrário, sou um apreciador, um namorador, um profissional em se tratando de bebidas. Sem preconceito, horário ou frescura com absolutamente nenhuma delas, acredito que existe sim o paraíso, e acredito que o harém particular que está reservado para mim certamente tem open bar. Já tive bebidas de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, assim como todas as ressacas que eram possíveis de se tirar delas. Mas todo esse amor, essa dedicação e essas dores de cabeça há muito deixaram de fazer parte do meu dia a dia, tudo por uma causa maior. Até mesmo maior do que churrascos de aniversário, camarotes com bebida liberada e brindes à meia noite depois de um dia difícil. Maior do que o meu gosto pelos drinques, coquetéis e chopes, eu optei por mergulhar de cabeça numa tentativa de aprimorar a mim mesmo, em vês de continuar me afogando na mesmisse da minha melancolia existencial.            

A girafa e o chacal

Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal . Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal.  De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos.  Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ao seu re

Wile E.: o gênio, o mito, o coiote

Aí todo mundo no Facebook mudou o avatar para a imagem de algum desenho e eu não consegui achar mais ninguém, mas depois de um tempo eu resolvi brincar também. O clima de celebração do dia das crianças invadiu as redes sociais de tal maneira que todos nós acabamos tendo vários flashbacks com os desenhos de nossos colegas, dos programas que costumávamos assistir anos atrás quando éramos crianças e decorar o nome dos 150 pokemons era nosso único dever. E para ficar mais interativo, cada um mudou a imagem para um desenho com qual mais se identifica, e quando a minha vez chegou, não tive dúvidas para escolher nenhum outro senão meu ídolo de ontem, de hoje, e de sempre: o senhor Wile E. Coiote. Criado em 1948 como mais um integrante da família Looney Tunes, Wile foi imortalizado pelo apelido e pela fama de fracassado em sua meta de vida: pegar o Papa Léguas. Através de seu suposto intelecto superior e um acesso ilimitado ao arsenal de arapucas fornecidas pela companhia ACME, Wile tento