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A crise dos quatro anos


            Foi o ano mais ou menos. Não é só disso que eu vou me lembrar, mas acho que aqui e agora, é a melhor definição que eu poderia dar. Diziam que seria o ano mais difícil. O ano em que realmente descobriríamos exatamente o que estamos fazendo aqui, o que queremos disso tudo, e o que vamos fazer com isso. Pois mentiram, porque eu ainda não sei.
            Eu sei que estou cansado. Meu Deus, como estou cansado! Cansado de levar bolos de pacientes, de fazer relatórios na clínica, de entregar trabalhos que não substituem provas, de obrigar meu corpo a assistir aulas porque a mente ficou em casa... Cansado de emprestar livros na biblioteca pra usar no relatório, no projeto, no TCC. TCC... TCC é algo que não me assustava tanto assim. Provavelmente porque, assim como o real tamanho da faculdade (que eu ainda não conheço por inteira) e a profundidade da psique humana, eu não tinha muita noção do quanto se tratava de um trabalho tão grande. Horas e horas de escrita, revisão, escrita, revisão, escrita, revisão, correção e começar tudo de novo porque não era nada daquilo que a gente queria dizer. Ou então, não era nada daquilo que a gente precisava dizer. TCC é algo que não acaba. Isso é algo que não nos disseram. Não acaba porque nunca está corrigido o bastante. TCC pronto é TCC que você não mostrou pro seu orientador e ponto final.
            Disseram que seria o ano mais difícil porque era muita coisa pra se dar conta. Até aí, acertaram. O que não disseram era que não só era muita coisa pra se dar conta, mas que se eu não tomasse cuidado era muito fácil eu me largar pelo caminho para conseguir carregar tudo. E confesso que algumas vezes eu me larguei. E pensei no que realmente estava fazendo ali. Pensei se tinha feito a escolha certa. Pensei se haveria um futuro para mim depois de tudo isso. E não só tudo isso me fez ficar ainda mais neurótico como também – adivinha só – me cansou.
            Não disseram também que eu não brigaria só comigo, mas com todo mundo ao meu redor. Até então era cada um no seu quadrado, com as suas inseguranças fortemente guardadas no peito, longe do alcance de quem não pudesse entendê-las, por mais que a gente tenha se visto quase todos os dias pelos últimos quatro anos e nos ensinaram que ao tocar uma alma humana, nós deveríamos ser apenas outra alma humana. Não disseram que, em se tratando de almas humanas, existe tudo menos simplicidade. E como se já não fosse o bastante derrubar minhas neuroses em cima dos outros, vieram os pacientes e jogaram as deles em cima das minhas. Pronto. Surtei. E agora?
            A crise dos quatro anos é um ritual de passagem. É algo que a geração passada tentou avisar para nós, mas ainda estávamos distraídos demais aproveitando a fase boa do terceiro ano, não mais tão calouros, mas nem tão veteranos. O que foi irônico de sentir hoje, quando sentamos no bar exatamente entre a comemoração dos veteranos do outro lado da rua, e a mesa dos calouros ao lado que brindavam ao primeiro ano de toda aquela Psicologia que eles estavam só começando a conhecer. E nós ali, os mais ou menos, cansados e cobertos de cicatrizes de orientadores e relatórios sem fim, só olhando ao redor e tentando recuperar o fôlego, lembrando de quando estávamos tão ansiosos pelo futuro, porém desesperados para correr pra rua e gritar que acabou.
            Eu não estou dizendo que foi um ano ruim. Pelo contrário, foi o melhor até agora. Foi o ano em que eu descobri que, mesmo sem acreditar que estou apto pra isso, eu posso ajudá-lo sim. Foi o ano em que eu aprendi a clinicar, a prevenir, a promover saúde e associar toda a teoria dos últimos três anos com a prática de triagens, transferências e todos os outros transtornos de ansiedade que fazem parte desta montanha russa de sentimentos, interpretações e mudanças da mente humana. Foi o ano em que eu me vi cercado de psicólogos e sob a análise de todos, a medida em que tentava compreender cada um deles também. Foi o ano em que, ao tentar ajudar o outro a se conhecer, eu acabei descobrindo muito mais sobre mim do que eu pensava conhecer. Algumas coisas boas, outras nem tanto, várias qualidades e um milhão de defeitos que, por bem ou por mal, fazem parte de mim.
            E aqui estamos, colocando mais um ano para trás. Os relatórios foram entregues, os TCCs foram avaliados e as provas acabaram. E ao ver os veteranos comemorando, eu não pude deixar de sentir inveja e, ao mesmo tempo, não. Eu estou feliz por eles, tudo acabou e agora podem partir pro abraço. Enquanto isso, nós somos os novos veteranos, prestes a vivenciar os últimos ‘’tudo” da faculdade antes de correr pro meio da rua ao som de cornetas e apitos. A crise dos quatro anos passou e nós sobrevivemos. Agora, meus amigos, é o começo do fim. Felizmente, nós ainda temos um ano juntos para dar a volta da vitória pelos corredores da faculdade em que passamos tanto tempo, todo dia, há quatro anos. Vai deixar saudade. Já está deixando saudades.

            Conversando ou não, cumprimentando ou não, passando reto ou não, eu passei quatro anos com vocês. E agora que está acabando, confesso que eu vou sentir muita falta. Acho que pior do que a crise dos quatro anos será a ansiedade de separação quando completarmos cinco.

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