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O show deve terminar


            Depois de anos de decepções e lágrimas derramadas sem alguma justificativa realmente plausível para a sua falta de caráter e piedade, era de se esperar que eu não me importasse mais com você. Muito menos, pensasse em você quando sequer te encontro no meu caminho. Mas não. Talvez a triste e aterrorizadora verdade seja que eu gosto mesmo é de sofrer. Não necessariamente por você, mas por algum instinto de sadomasoquismo natural que se sobrepõe completamente sobre minha necessidade de garantir minha autossobrevivência, senão por motivos que estão mais aprofundados na distorção da minha psique do que eu sou capaz de imaginar, mas - e infelizmente preciso admitir minha superficialidade nem-tão-encoberta aqui - simplesmente porque você é bonita de se ver.
            Porque seu olhar cativante não entrega a rispidez das suas verdadeiras intenções, tampouco confessa a exata realidade dos seus pensamentos. Só não há como negar mesmo o quanto você é bonita. E indiscutivelmente competente em se esconder por trás do seu olhar, para que ninguém descubra o tamanho do eco que é transmitido pela imensidão do vazio que te preenche. Mas eu já estive por trás do seu olhar e sobrevivi para contar a história. E por este e muitos outros motivos é que eu deveria te odiar, te evitar, te repudiar por completo e fazer um esforço a mais para seguir a minha vida sem sequer pronunciar o seu nome de novo. E seria muito fácil, realmente, se eu não amasse você.
            Mesmo com as suas incapacidades, suas habilidades desconcertantes de me empurrar da corda bamba finíssima e estreita que eu carinhosamente chamo de meu equilíbrio emocional, e da sua imoralidade quanto aos sentimentos dos outros quando não estão todos direcionados a você. Você gosta do controle, da admiração, dos olhares escondidos que tentam te fotografar ao máximo para que possam se lembrar melhor de você quando não está por perto. Você gosta dos aplausos, dos holofotes imaginários acima da grandiosidade maquiada do seu ego frágil e assustado. Você tem medo de perder tudo isso, porque então o que restaria?
            Você seria capaz de existir sem uma plateia? Seria capaz de reluzir sua personalidade oca através de refletores fortíssimos que cativam as pessoas sem que percebam que estão na verdade ficando cegas por tudo aquilo que você não os deixa ver? Às vezes eu acho que você não existe. Às vezes eu tenho certeza, porque olhando em retrospectiva foram poucas as ocasiões em que você realmente permitiu ser vista por mim, com toda o resquício de veracidade e vulnerabilidade que você ainda possui. Quando chega em casa à noite, tira a maquiagem e o som dos aplausos cessa, eis que você realmente surge. Quando se sente segura para dar fim ao espetáculo de mais um dia, e para respirar livremente como a mera mortal que você é mas que ninguém desconfia, e não há ninguém por perto para desmascarar a sua tal felicidade, você vive.
            E falando como alguém que já esteve do seu lado para desmentir a lenda da sua essência, você chora por isto. Finalmente se descontrola e soluça até cansar e desmaiar em um sono profundo - e talvez o único lugar aonde você não sente medo de nada nem nenhuma necessidade de se esconder do mundo, de todos e de si mesma. Provavelmente porque sonhos não são reais, e você se sente muito confortável com isto. Mas aí você acorda, treina em frente ao espelho a pose de mais um dia, mente para si mesma que você está bem e que o mundo é seu, e sai de casa para rever os fãs.
            Eu te amo. Mas cá entre nós, se tem uma coisa que eu aprendi nesses anos todos, é que por mais que eu adore o seu show, você não merece os meus aplausos.

            Muito menos, as minhas lágrimas.

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