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O lixo existencial


            Em conversas com algumas pessoas que se inspiraram com meus surtos de ócio criativo e queriam saber como era para mim escrever coisas tão sem sentido, mas ao mesmo tempo tão dolorosamente profundas e sinceras, eu disse que era como jogar o lixo fora. Jogar o lixo fora? É! Pensa comigo: Você vai no supermercado e compra um bolo, ok? Aí você chega em casa, arruma a mesa com todo o cuidado, coloca a cafeteira pra trabalhar, e muda o status do seu WhatsApp pra “Comendo bolo, oh yeah”. Então você senta na mesa, serve um café, corta uma fatia do bolo e imediatamente sobe aos céus do orgasmo estomacal. A primeira mordida te dá aquela expressão de “Esperei por você a vida inteira!”, coisa que algumas pessoas já não te provocam mais, só a comida mesmo. Aliás, acho que depois de algum tempo, a gente deixa de sentir amor com o coração e só sente paixão com o estômago, mas isso é assunto para outro amanhã.
            Enfim, as primeiras fatias daquele bolo foram deliciosas, saborosas, salivantes. Aí você guarda o resto daquele bolo na geladeira para comer mais algum outro dia, só que você se esqueceu de que essa semana era o prazo final para entregar aquele trabalho sobre a visão de Freud sobre o narcisismo, que tem reunião no trabalho a respeito das novas estratégias de divulgação dos projetos de assistência social da prefeitura, que você precisa retornar as três chamadas não atendidas da sua mãe que ficou preocupada com você ontem depois da sua consulta no dermatologista sobre aquele cisto estranho no seu pescoço, mais a chamada daquela garota que te chamou pra sair justo enquanto você estava no telefone com a sua mãe e esqueceu de mandar mensagem perguntando como ela estava só pra não perder o contato, e que você ainda precisa passar no mercado a caminho de casa porque acabou o detergente para lavar aquela louça do jantar que você organizou em casa anteontem e ainda não lavou porque ainda tinha espaço na pia para renegar a louça do seu café de hoje de manhã.
            Quer dizer, aonde você encaixa o resto daquele bolo nisso tudo? E o bolo não espera pela gente; muito pelo contrário, ele se transforma em uma bomba relógio na sua geladeira que irá autodestruir sua deliciosa, saborosa, salivante consistência exatamente quando você se lembrar da existência dele de novo e abrir a porta da geladeira só para se deparar com seus restos mortais em decadência dentro daquele tuppaware da sua mãe – que você também se esqueceu de devolver e sempre dá uma desculpa quando ela liga cobrando, mas que agora vai ter que jogar fora e ser condenado pelo resto da vida por ser “irresponsável” com tudo que a mamãe te empresta. Acontece, então, uma revolução dentro de você. Aquela calma que só o desespero dá, se multiplica e passa a tomar atitudes por você, depois de borbulhar toda a raiva, ansiedade, angústia, tesão desperdiçado e tristeza por ter chego mais uma sexta-feira e, em vês de sair, você levanta a bandeira branca e decide ficar em casa porque não há balada no mundo que compense você deixar a sua cama para trocar de roupa, se meter no meio de uma multidão de pessoas bêbadas e música alta, e ainda se agarrar na esperança de que aquele dia ainda pode valer a pena.
            E aí você vai até a geladeira de madrugada para pegar uma garrafa d’água e reencontra aquele tuppaware, só que sem nenhuma lembrança do que há dentro dele. E então você o redescobre: o bolo delicioso, saboroso, saliente que você comprou mês passado, comeu três fatias, e deixou perdido no vórtex de esquecimento aleatório e caos transitório que compõe a sua vida. E às três e quinze da manhã da madrugada de um Sábado, você joga aquele bolo fora, tenta ressuscitar a tuppaware da sua mãe para evitar mais um sermão da montanha com o detergente que você milagrosamente se lembrou de comprar, e sai da cozinha se sentindo ridiculamente vitorioso. O que eu quero dizer com tudo isso? A vida é a vida mesmo; a minha tem dessas coisas de esquecer comida na geladeira porque passei a semana alternando entre reuniões de trabalho, filas de banco, mensagens de amigos ressentidos porque esqueci de respondê-los, consultas médicas a respeito do que sobrou da minha saúde precária, e telefonemas da minha mãe me xingando porque eu não tenho paciência com ela, até que ela mesma perde a paciência e desliga na minha cara. Se sua vida não for parecida com isso, certamente tem outros problemas que te fazem esquecer que a semana tem cinco dias que passam voando, que muita coisa ficou sem ser resolvida, e que aquele bolo continua guardado na sua geladeira, envelhecendo e apodrecendo como a nossa própria paz de espírito, que é testada pelo tempo a cada boleto bancário que a gente tem que reimprimir porque o boleto de verdade se perdeu pelo correio.
            O sabor do bolo pode variar: pode ser aquele amor perdido que você ainda não superou, aquela paixão arrebatadora que te roubou noites de sono e tentou te sufocar durante a noite com um travesseiro de saudade, ou pode ser de raspas de chocolate mesmo. Agora imagine você jogando esse bolo no lixo, e jogando esse lixo fora da sua casa. É, no mínimo, libertador. Por um milésimo de segundo, aquele lixo representa o fim da repressão de todas as dificuldades da sua vida, que parecem finalmente terem entrado em uma convergência milagrosa e que você, num trocar de uma sacola de lixo, conseguiu se desprender e recuperar aquela sua paz de espírito que você achou que tinha perdido, junto com as chaves do carro e aquele maldito boleto bancário que você teve que reimprimir.
            Pra mim, escrever é isso. É tirar alguns minutos do caos que domina a minha vida para fazer uma limpa na geladeira e jogar aquele bolo fora. Porque eu como muito bolo – metaforicamente falando, por enquanto – mas nem sempre lido com as sobras de maneira muito direta ou saudável. E guardo os restos mortais bem no fundo da geladeira, para lidar com isso em qualquer outro dia que não seja hoje. É como bloquear aquela pessoa do Facebook porque você ainda não quer lidar com o fato de que vocês não andam mais de mãos dadas, não trocam mais mensagens de madrugada, nem se cumprimentam quando se encontram no estacionamento do shopping. Mas quando você tira o dia para limpar a geladeira, e lidar com o fim daquele relacionamento, ou chorar tudo que tem pra chorar por aquela pessoa que simplesmente não vai ser sua, você finalmente confronta o fato doloroso, porém real, de que as sobras daquele bolo não são mais comestíveis, que nada daquilo ainda tem a algo a ver com você, e que o lugar daquilo é no lixo.
            Claro, este blog não é um lixão e vocês não estão aqui chafurdando nos restos mortais da minha vida pessoal, amorosa ou ilusória. Este blog é uma obra verdadeiramente fictícia, cujo objetivo é me livrar de toda bagagem emocional que eu não quero mais carregar, e me emagrecer de todo rancor, insatisfação e dúvidas que costumam me inchar e me impedir de entrar nas minhas calças novas. Caso você se identifique com alguma coisa por aqui, e isto te inspire a mudar sua vida ou – digamos – limpar a sua geladeira, fico feliz por você. Estamos todos juntos neste mundo torto e incorrigível, esperando por dias mais felizes, pela vitória na copa do mundo, e por – digamos – pedaços de bolo que não nos decepcionem.

            Enfim, é por isso que eu escrevo. Alguém está servido?

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