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A passagem de ida

Eu não sou de fazer esse tipo de coisa. Não, eu sou do tipo que planeja. Infelizmente, eu sou do tipo que planeja cada detalhe, e sempre foi assim. Aonde vou, como vou, com quem vou, que horas vou, quanto tempo vou ficar e, principalmente, quando vou voltar. Este sou eu. E talvez seja exatamente por ser assim que existam outras pessoas por aí que me considerem tão confiável, apesar de todas as crises existenciais e besteiras aleatórias que eu despejo sobre elas. Mas me consideram tão confiável que, às vezes, é assustador. Amedrontador, pra falar a verdade. Não, não, eu estou exagerando...
   Mentira, não estou não. É sufocante. A cobrança, as expectativas, as satisfações... Já faz algum tempo que não sou acostumado a dar satisfações sobre o que eu escolho fazer com a minha vida; só sobre o que eu já fiz, que eu transcrevo por aqui, mas em forma de prosa e poesia. Sabe, pra ficar menos maçante, e mais atraente para os interessados anônimos que me mantém motivado a continuar escrevendo os capítulos da minha vida. E por mim mesmo, para casos de emergência, como crises existenciais ou besteiras aleatórias que possam vir a esfumaçar meus pensamentos. É sempre bom voltar aqui e reler o que já escrevi, igual como quem deixa migalhas de pão pelo caminho que já percorreu dentro da floresta, no caso de se perder. E de certo modo, foi assim que eu aprendi que às vezes, para seguir em frente, é preciso voltar alguns passos para vislumbrar melhor a estrada adiante.
   Mas dessa vez, nesse feriadão estendido em particular, eu não estava me sentindo tão otimista e esperançoso – o que costuma ser o meu tipo de coisa. Não. Desta vez algo dentro de mim quebrou, e falou mais alto do que toda a vida que me cercava. Mais alto do que os compromissos, as cobranças, as expectativas, o pão que eu precisava comprar no mercado a caminho de casa, e a conta de telefone que eu precisava pagar na lotérica que fica a caminho do mercado. E naquela manhã nebulosa de Quarta-Feira, eu decidi que iria viajar. Que iria sair um pouco de perto dessa bagunça, desse caos condicionado que eu chamo carinhosamente de vida, e iria tentar respirar um pouco sem precisar me preocupar com trabalho, ou faculdade, ou relatórios, ou contas de telefone. Eu iria para o lugar de sempre – para minha casa, longe de casa – para rever a família, os amigos, os meus marcos históricos da adolescência, e o berço de todas as minhas crises existenciais e besteiras aleatórias. Só que desta vez, quando eu cheguei no guichê da rodoviária, algo mudou. Eu só comprei a passagem de ida, porque parte de mim – a parte que eu senti que quebrou – havia decidido que não queria mais voltar. E eu não sou de fazer esse tipo de coisa.
   Aí você vai me dizer que foi uma fuga, e que não se pode fugir dos problemas, e que as responsabilidades estão aí e cabe a cada um responder pelo que lhe cabe, e que a sociedade blá blá blá. É, eu sei. E sabe do que mais eu sei? Que de vez em quando você também pensa nisso. É, você mesmo. Você que está aí, anonimamente e atonitamente me julgando, palavra por palavra, enquanto secretamente sente que sim, você já pensou nisso também. Então, eu entendo. Claro que eu iria voltar eventualmente, porque eu ainda sou eu. Aquele, que é dolorosamente metódico e refém de um cárcere público que eu mesmo me condicionei, e que sempre leva um par de meias a mais na mochila em caso de emergência. Claro que a minha pequena revolta não passaria da definição de uma viagem de feriado prolongado, mas se isto é bom ou não, deixo para você decidir. Só não precisa me responder o que decidiu; já está feito e eu voltei. Quatro dias depois, para ser mais exato. E quer saber? Foi muito bom. E sabe do que mais? Eu nem fiz nada.
   Não bebi, nem fumei, nem mudei minha identidade para conhecer alguma devassa desconhecida sob a proposta de cruzarmos a fronteira e começarmos vida nova em algum lugar ao norte do Atlântico (Nota do autor: ultimamente tenho tido um devaneio improvável, porém constante, de me mudar para a Guiana Francesa, deixar a barba ultrapassar todos os limites do decoro social, e viver de coquetéis e filosofia à beira da praia. Mas até a presente data, a logística de tal devaneio ainda não foi bem concretizada). Ok, ok, lá vou eu me enrolar nas minhas crises existenciais e besteiras aleatórias de novo. E é claro que eu bebi, mas só um pouco. Porque eu ainda sou eu.
   Não sei se é Cascavel que me cansa, porque me lembro bem de alguns anos atrás, antes de todo esse mimimi que eu sempre repito de mudar de cidade, começar vida nova, sentir medo e ansiedade pelo futuro e etc, de quando eu ainda morava em Londrina e sentia a mesma vontade de fugir. A mesma pressão, e o sufoco, e as expectativas, e toda uma vida de possibilidades que estava começando a se apresentar diante de mim... E que, assim como naquela manhã nebulosa de Quarta-Feira, eu não soube como lidar direito e seguir com o instinto mais tradicional e encoberto do homem: fingir que nada disso era comigo, dar as costas e correr para qualquer outra direção. Era isso que eu fazia, e ainda é o meu primeiro instinto diante, mais uma vez, de toda uma vida de possibilidades que está voltando a me encarar, como um valentão que me empurra e pergunta com uma voz ríspida e grosseira: “O que você vai fazer, hein? Hein?”. “Dane-se, eu vou embora!”, eu penso. Só que não. Mas eu me sinto bem em Londrina, e nos últimos cinco anos, este bem estar é uma sensação que geralmente dura um dia e meio após eu chegar, e só bate no meu peito de novo quando já estou na rodoviária de novo.
   Às vezes parece que a minha vida toda gira em torno de uma rodoviária. Ou, no mínimo de idas e vindas, tentativas de fuga e ligações de agentes da minha liberdade condicional, que eu chamo carinhosamente de família e amigos. Porque, por mais que eu gostaria de fugir e sumir pelo mundo afora, dois fatores que também são o meu tipo de coisa me impedem: as pessoas que me ajudam, dia após dia, a continuar sendo quem eu sou, e a potencial ausência de uma tomada para carregar o meu Smartphone em determinada praia da Guiana Francesa que eu vá parar.
   Eu não estou infeliz, mas confesso que tive alguns dias difíceis. Ok, alguns meses difíceis. Ok, 2014 está zoando com a minha cara desde a segunda parte do Show da Virada. O que eu venho tirando de bom de toda essa zoação – a demissão, a baliza mal sucedida, a falta de alguém para andar de mãos dadas no shopping – é que todos esses passos para trás estão ao menos me ajudando a enxergar melhor a estrada adiante, e exatamente até onde eu quero ir. Desbravar o mundo? Não sei. Voltar para Londrina? Quem sabe. Só o que posso dizer com certeza é que, quatro dias atrás, tudo o que eu queria era cair fora daqui – sinto muito, sociedade. Quatro dias depois, eu voltei melhor do que nunca. Com todas as crises existenciais e besteiras aleatórias, a vida tem dessas coisas. A minha, pelo menos, tem.

***

   No dia seguinte, eu estava de volta na minha rota matinal para o  trabalho como se nenhuma dúvida sobre a minha existência neste planeta tivesse cruzado a minha mente, com os fones de ouvido no máximo me guiando pelo caminho, quando um carro encostou do meu lado e um sujeito me pediu informações de como chegar a uma floricultura que fica na rua de cima da minha casa. Senão me engano, talvez tenha sido a primeira vez que eu finalmente consegui guiar alguém para tomar o caminho certo dentro desta cidade, em parte por já ter andado muito por aí e ter sido capaz de ter deixado um pouco de vida por todos esses quarteirões que me cercam. Engraçado mesmo é finalmente ser capaz de me localizar, e de até guiar outras pessoas a andarem por aqui, enquanto sentia vontade de cair fora.

   Definitivamente, ironia assim não se planeja.

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