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O modo aleatório


   Eu tenho um pequeno ritual matinal que traduz perfeitamente o modo como eu levo a minha vida: eu me levanto, tomo banho para tentar acordar, arrumo a cama - porque, segundo fontes razoavelmente confiáveis, “os anjos da guarda continuam dormindo se você não arrumar a cama”, e não é bom sair de casa desprotegido por eles, o que eu levei em considerável análise, dado que quando isto aconteceu, eu me lembro perfeitamente de ter arrumado a cama de manhã – preparo um cappuccino para realmente acordar, me visto (não que eu tenha preparado meu café nu), seleciono a lista de reprodução que atualmente domina o meu iPod (sim, eu ainda tenho um iPod), e saio de casa para enfrentar mais um dia de vida. Ou pelo menos, é isto que eu já me acostumei a fazer a cada amanhã que nasce e se apresenta para mim, com todas as possibilidades do mundo. Tanto é que, às vezes dá certo, e às vezes não.
   O fator alarmante que distorce toda essa rotina e, consequentemente, o resto do meu dia está exatamente nesta lista de reprodução; nas trilhas sonoras que eu mesmo seleciono para mim, para me guiar até o trabalho, até a faculdade, até os meios aos quais eu me submeto para atingir os meus fins, ou só para ouvir enquanto tomo banho mesmo (desta vez, nu). Quando as músicas novas se desgastam, e as antigas de reserva já não me animam tanto quanto costumavam, eu recorro ao botão de emergência do “modo aleatório”; e saio em uma busca incansável por alguma melodia que se encaixe ao meu estado de espírito e seja capaz de traduzir o sentimento-sem-nome-até-então que estou vivenciando, para que eu me sinta mais capaz de levar o meu dia adiante. O que acontece é que, geralmente quando o botão de emergência do modo aleatório é acionado, é porque minha vida ao redor do iPod também anda mais inconsistente do que o normal. Tanto que nem as listas de reprodução que eu havia selecionado para mim conseguem dar conta.
   Caso você não esteja entendendo o meu drama, eu preciso confessar que a minha vida precisa de trilhas sonoras. Porque eu sou movido à música, desde que saio de casa com os fones de ouvido para enfrentar mais um dia longo e exaustivo de vida, até a hora em que volto com eles e já providencio algum som ambiente para remediar o silêncio agonizante que dominava meus arredores até então, para que a aterrissagem de volta ao meu aconchego seja mais suave. Desde as tardes de tereré ao som das mais recentes adições à minha coletânea que não perco tempo para atualizar em meu pen-drive, até as noites de uísque na sacada ao som das canções mais clássicas e melodramáticas, para reflexões e conversas mais profundas do que o brilho sol permite desenvolver.
   É por isso que o modo aleatório parece ser um espelho tão preciso da minha vida; quando as coisas não vão de acordo com o planejado, o mesmo se despenca em cima das músicas que eu havia selecionado para acompanhá-las. Quando eu não sei mais o que fazer, eu também não sei o que ouvir. E quando eu não sei mais o que dizer, eu também não sei o que cantar. Que a vida é um caos constante eu até entendo, mas quando este caos se torna capaz de silenciar até mesmo as 25 músicas mais tocadas que meu iPod automaticamente seleciona, é aí que as coisas realmente ficam sérias. Eu consigo sobreviver sem tirar minha CNH, ou sem um estágio na minha área, sem folgas do trabalho ou sem alguém para andar de mãos dadas de shopping, mas não sem algo para ouvir que traduza tudo isso com os acordes perfeitos para me acalmar.
   E foi em um desses momentos, de procura desesperada por algo para ouvir enquanto caminhava de volta para casa depois de mais um vida de, uh, vida, quando eu pensei em algo: talvez o problema não seja nas músicas que não se encaixam mais, mas no silêncio que toma conta quando os sons cessam. Quando a realidade dos meus problemas se torna inegavelmente alta, aguda e angustiante – e que talvez nenhum artista consiga compor uma letra capaz de fazer com que eles não sejam mais nada além de ruídos secundários que não são capazes de sobreviver a uma sinfonia mais harmônica.
   Porque a verdade é que a vida em si é levada por todos nós em modo aleatório, onde planos se desfazem o tempo todo, ritmos se elevam e se diminuem a cada nova dança em que nos envolvemos, e só o que cada um de nós pode fazer é se esforçar para aprender os novos passos que devem ser dados se quisermos continuar na pista. E a vida, ao contrário do modo aleatório do meu iPod, não teve todas as suas faixas selecionadas por mim, nem pode ser pausada ou avançada ao meu gosto. Às vezes haverão músicas que eu não vou gostar de ouvir, bem como haverá momentos em que alguma das minhas 25 mais tocadas irá se repetir. E todas essas músicas que eu ouço quando saio de casa de manhã para viver nada mais são do que belas melodias para me distrair do que realmente não importa: das inseguranças que me mantém acordado à noite, das dúvidas que me impedem de seguir em frente, e dos problemas que preciso deixar pelo caminho antes de voltar para casa. Não é a toa que passo a vida tão perdido em músicas, que às vezes nem vejo o tempo passar.

   O que me incomoda mesmo é quando desperdiço músicas em pessoas, e quando as pessoas se vão, as músicas ficam impregnadas de sentimentos e lembranças que eu já não faço mais questão de repetir. Taí a lista das 25 mais tocadas que não me deixa mentir ou, muito menos, esquecer.

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