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A programação anormal


   Antes de qualquer coisa, eu vou admitir o óbvio: eu tenho muito tempo livre. Compromissos à parte, eu sempre me senti capaz de dar conta de todos os meus afazeres, de lavar, secar e guardar a louça da pia, de não esquecer que o vencimento da conta de água é diferente do talão da luz, de que eu tenho uma consulta médica marcada para o meio de Setembro, de que eu preciso passar no mercado para comprar sabão em pó e de que tem roupa para tirar do varal antes de encher a máquina de novo, e de que, se possível, eu preciso repensar alguns comportamentos meus caso eu queira dividir a minha vida com alguém... E apesar de tudo isso, eu me sinto irremediavelmente entediado no fim do dia. O que me faz carregar um travesseiro, uma coberta e o meu ócio criativo em modo avião para o sofá da sala, onde eu ligo a televisão e desligo a minha ansiedade para me distrair um pouco. Só que, mais vezes do que eu gostaria, minha ansiedade não desliga; ao invés disso, ela só diminui de volume um pouco para que eu consiga escutar o que está acontecendo na novela. Até que cortaram para o comercial com parte da trilha sonora do casal principal tocando ao fundo, e foi aí que a minha ansiedade desregulou de novo. Normal. Pelo menos, para mim.
   O que me incomodou não foi a música em si, mas o fato de que eu me lembro dela ter sido usada como tema de um casal principal de outra novela de não muito tempo atrás. Mas uma rápida pesquisa no templo dos desocupados – que, ao contrário de mim, você que trabalha, estuda, faz academia, recicla seu lixo, lê para velhinhos cegos em asilos e entende como o mercado de ações funciona, o conhece apenas como Google – me deixou um pouco mais assustado do que eu estava preparado. Olha só: “Quelqu'un ma dit” é uma música da Carla Bruni que, além de eu não saber escrever e do Google milagrosamente ter reconhecido que era isto que eu queria quando pesquisei “quldnmadid”, é o tema do casal principal da nova novela das “9” da Globo. E ao ser parcialmente traído pela minha memória, eu confirmei minhas suspeitas de que ela já havia sido usada para outro casal de outra novela, mas há nem tanto tempo assim. 2005, para ser mais exato. 9 (sem aspas) anos atrás.
   É aí que você – que trabalha, estuda, faz academia, recicla seu lixo, lê para velhinhos cegos em asilos, entende como o mercado de ações funciona e vai à igreja aos Domingos – se pergunta, “E daí?”. Mas para você que tem tanto tempo livre quanto eu e secretamente acompanha minhas desventuras irracionais, é claro que eu não preciso explicar que a música das novela das 9 não era só uma música, mas um eco da minha mortalidade, não é? Não? Ok, fui longe demais dessa vez. Olha só: 9 anos atrás, eu tinha 14 anos. Só 14 anos. Eu estava no primeiro ano do Ensino Médio. Estava morando em Londrina com a minha mãe, minha avó e, se não me falha a memória, nossa gata de estimação.  Também foi nessa idade em que eu me apaixonei pela primeira vez, e me decepcionei pela primeira vez, e insisti no mesmo erro pela primeira vez, até que perdi algo que nunca foi meu para outro cara pela primeira vez. Foi uma idade de muitas “primeiras vezes” – exceto pela mais relevante de todas, que foi acontecer só alguns anos depois – e eu me lembro de que, apesar das coisas parecerem tão intensas e do mundo parecer tão grande, eu sentia que ainda tinha um longo caminho pela frente para seguir. Que ainda havia muita vida por vir, e que com o passar dos anos tudo iria mudar, iria melhorar, e blá blá blá.
   9 anos depois. Estou com quase 23 anos, cursando o último ano da faculdade de Psicologia, morando longe dos meus pais em Cascavel com o meu próprio apartamento, sem trabalhar, sem estudar além da lei do mínimo esforço, sem academia para reduzir os danos de comer porcaria e beber demais de Segunda à Segunda, sem reciclar o lixo e sem ler para velhinhos cegos em asilos, sem ter uma noção sequer de como o mercado de ações funciona ou de que horas é a missa aos Domingos. E sem alguém para dividir a minha vida, a minha cama ou, muito menos, o meu sobrenome. Tem dias em que eu me sinto mal por passar horas assistindo séries no meu quarto, sem sentir a luz do sol e sem ouvir a voz de outra pessoa. E tem dias que eu me sinto bem – confortável, até – e que eu deveria estar exatamente onde estou aqui e agora na minha vida. E aí a Globo resolveu usar aquela música – a mesma música de 9 anos atrás – como música tema do casal principal da novela. O que me faz pensar que, entre dias bons e ruins, também existem dias consideravelmente férteis para a minha imaginação, que tem seu limite muito próximo ao da zoeira. Entendeu? É que a zoeira não tem limites, há há. Especialmente, a zoeira que rola na minha cabeça.
   Minha criatividade exacerbada me inspira a interpretar o paralelo dessa música de 9 anos atrás e de hoje, de duas maneiras: como a prova abstrata de que, apesar de ter crescido, eu estou preso no tempo e desesperadamente necessitado de uma mudança antes que eu envelheça na minha rotina e seja sepultado pelo meu tédio existencial... Ou, em uma luz um pouco mais positiva (porém não tão menos exagerada), como o limite do universo que me cerca, pelo qual eu já vivi tanto, mas tanto, que as coisas ao meu redor se viram obrigadas a serem reprisadas para mim. Vai ver é por isso que eu consigo perceber a minha vida organizada em padrões: desde as mulheres que me atraem, até as músicas que eu ouço, os lugares que eu visito, os amigos que eu encontro, os textos que eu escrevo, e a essência que eu mantenho.
   E enquanto eu viajava cada vez mais longe nos meus pensamentos sobre a vida, a morte, os caminhos não trilhados e o limite do universo, a novela voltou do comercial com aquela música ao fundo de novo, com uma daquelas paisagens montanhosas iluminadas por um entardecer manso que acalmou os meus nervos e diminuiu o volume da minha ansiedade de novo. Será que o casal vai continuar junto, ou vai ser uma daquelas novelas em que acontece algum mal entendido que deixa eles separados por 100 capítulos, até se resolverem no final? Será que eu vou encontrar alguém assim pra dividir a minha vida? Será que eu desliguei a torneira da máquina de lavar?

   Antes de qualquer outra coisa, eu vou admitir o óbvio: eu ando gastando o meu tempo livre assistindo televisão demais. Mas convenhamos que talvez seja melhor eu me sentir emocionalmente ameaçado de morte pela Globo durante o comercial, do que ser alienado por ela durante a programação normal.

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