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O nome do pai


   Você me dá trabalho. Começa com aquela mistura sutil de susto e ansiedade que eu sinto quando toca o telefone e eu vejo que é você, e me pego imaginando o que deve ser que você quer me dizer, que precisou procurar seus óculos para procurar o meu nome na agenda do celular para me ligar. Só para começar a dizer qualquer coisa que não tem tempo de fazer sentido, porque a ligação sempre cai e sou eu quem precisa te retornar. E dá trabalho. Assim como às vezes acontece da gente precisar ir resolver algum negócio de família por aí, que obriga a gente a dirigir por um caminho em comum ao invés das vidas separadas que aprendemos a levar. Você de um lado da cidade e eu em outro. Você com seus problemas, seu estresse, seus telefonemas sem fim, seus cabelos brancos impiedosos, sua rispidez acidental e seu chaveiro completo com todas as chaves do seu mundo que, vez por outras, você acaba perdendo junto com seus óculos. E eu com os meus problemas, minhas inquietações, meus trabalhos de faculdade, meus problemas de saúde, minhas reclamações sem fundamento, minhas filosofias furadas e minhas superficialidades abstratas que eu cultivo tanto. Como este pequeno espaço cibernético, por exemplo, que serve para arquivar as minhas paranoias, os meus sonhos encostados e os meus desejos por um futuro mais tranquilo para mim. Aliás, para nós. Porque, como era de se esperar, você me dá muito trabalho. Inclusive o trabalho de começar a pensar sobre o que eu vou fazer com você.
   Você, que tem dias que só sabe reclamar, passar as mãos pelos cabelos brancos resilientes, suspirar fundo e dizer que não está fácil. É, eu sei. Eu ando acompanhando bastante as suas lutas, os seus desafios e as suas limitações. E tem me dado muito mais trabalho do que eu esperava, porque eu cresci com essa visão distorcida de que a gente ficaria bem sempre, independente do que acontecesse. Aí você vem e puxa a minha orelha, arregala os olhos, perde a paciência e me diz que a vida não é nada disso, que a gente precisa batalhar desde quando acorda até ir dormir para garantir que o que é nosso continue sendo nosso, e que só existe uma coisa nesse mundo pela qual nós podemos nos descobrir capazes e sobreviventes: trabalhando.
   Talvez seja esta a grande lição que eu sempre me recusei a aprender, mas que agora parece fazer mais sentido do que nunca. Talvez seja devido ao fato de que você, com os seus olhos cansados e seus cabelos brancos, não vai estar aqui para sempre, e mais cedo ou mais tarde eu vou precisar deixar as minhas bobagens de lado e me adequar um pouco mais a este mundo, passando menos tempo sonhando acordado e mais tempo trabalhando firme. Talvez seja devido ao fato de que, ultimamente, o primeiro pensamento que me vem à mente quando você me liga já não é mais “o que foi que eu fiz errado desta vez?”, mas sim, “ele precisa de ajuda; o que será que eu posso fazer?”.
Demorou muito tempo para que a gente chegasse até esse ponto. Aliás, muito tempo e muito trabalho. Que, por sinal, são duas coisas sobre as quais eu ando aprendendo muito mais com você do que jamais aprendi por conta própria, no meu lado da cidade, na minha vida alheia à sua. Aprendi que quando se é responsável por empresas, negócios, pessoas, compromissos, prazos, vencimentos de boletos, planilhas e – mais importante do que tudo – uma família, o tempo tende a passar rápido demais em um dia, e o trabalho que tudo isso dá parece que só acumula. E ninguém consegue fazer nada sozinho nesse mundo. Na verdade, talvez até consiga, mas de que adianta fazer um bom trabalho sem ter com quem compartilhar as vitórias? Alguém com quem brindar pela sensação de dever cumprido.
   A verdade é que, com o passar do tempo e do trabalho pelo qual a gente vem se sacrificando cada vez mais, cada vez menos eu consigo pensar em algo marcante para te dizer quando esses dias especiais chegam. Esses dias inúteis que não servem para fazer serviço de banco, mas que significam muito mais do que o prazo de vencimento de uma fatura. E aí eu me pego tentando fazer um bom trabalho com as palavras para ter algo com o que te presentear no seu dia; algo que te dê orgulho de ver    que, depois de todo esse tempo e todo o nosso trabalho, eu ando aprendendo muita coisa sobre você, sobre mim, e sobre o legado que eu vejo você construindo e se esforçando ao máximo para compartilhar com os seus filhos. O legado de que, se a gente quiser chegar a algum lugar neste mundo, o jeito é levantar da cama de manhã cedo e trabalhar. E quando digo que você me dá trabalho, não é uma coisa totalmente ruim. Porque foi você quem me deu o meu primeiro trabalho, e o primeiro a tomá-lo de mim quando eu não soube valorizá-lo. Assim como foi o primeiro a me devolvê-lo quando eu prometi mudar e me esforçar mais, e o primeiro a me incentivar a chegar cada vez mais longe com tudo que eu sou capaz de realizar. Mas você também me dá trabalho quando eu me pego pensando em como eu posso continuar ajudando você, e como eu posso cuidar de você agora que estou quase andando sozinho pelo mundo, enquanto a sua vista fica cada vez mais cansada e o seus cabelos, mais brancos.
   Seu jeito grosseiro foi o que incentivou a minha ironia fina. Sua determinação é o que semeou a minha teimosia. Sua força é o que fundamenta o meu caráter. E, acima de tudo, sua resiliência é o que me ensina cada vez mais que desistir não é uma opção, e que é trabalhando que um homem se mantém inteiro. Eu carrego seu nome comigo, assim como seu legado, o futuro da nossa família, e a herança da sua integridade. E como se tudo isso não fosse o bastante, dizem que eu também me pareço muito com você.

   Feliz dia dos pais, Marcio Moresca. O homem, o mito, o administrador.

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