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A cidade e eu


Cascavel e eu nunca tivemos um relacionamento perfeito. Mas desde a primeira vez que a conheci, havia algo cativante em seu olhar. Algo que até hoje ainda me chama a atenção. Como se houvesse algo a ser descoberto, e a resposta estivesse em algum detalhe da linha do seu horizonte. Parecia ser algo tão afrodisíaco, tão cativante, tão chamativo... Tão cheia de possibilidades... Eu precisava saber mais sobre ela. Explorar seus limites, conhecer seus domínios, fazer parte do seu mundo. E alguns anos depois, foi exatamente isso que eu fiz: eu me mudei para cá.
Assim como qualquer relacionamento, a novidade acaba. O movimento cessa, o calor esfria e a monotonia se instala, dando lugar à insatisfação, a impaciência e a dúvida. Será que eu fiz a escolha certa ao deixar tudo para trás? Em abrir mão de tudo o que eu já havia conhecido, só pela chance de que pudesse haver algo a mais naquele novo horizonte? Eu não sabia dizer ao certo – só sabia que era tarde demais para voltar atrás. E foi assim que Cascavel e eu começamos a ter... Dificuldades.
Porque se tem uma coisa na qual Cascavel era boa, era sua capacidade de se tornar inacessível. Fria ao ponto de ultrapassar os limites de qualquer termômetro sensato, e da tolerância de qualquer turista desavisado. Muitas vezes era inesperada, mas das maneiras mais cruéis. Com rajadas fortes de vento e tempestades impiedosas. Era capaz de se mostrar instável sem qualquer razão ou aviso prévio – como se ela quisesse provar que nada poderia domá-la. Como se precisasse provar que era livre e independente, e que por mais atrativa que pudesse parecer, ela não seria de ninguém. Pelo contrário; era ela quem tomaria posse dos outros. As pessoas pertenciam a Cascavel, jamais o contrário. E logo eu, que vim de longe e supus que haveria um lugar especial guardado para mim, definitivamente não seria aquele que a faria mudar de idéia.
Cascavel me magoou muito. Mais vezes do que consigo lembrar, ela me deixou desamparado na chuva gelada, ou encolhido e abandonado em noites mornas. E quando mais eu me dispunha a sair por aí sem rumo, na esperança de encontrá-la, mais eu me sentia perdido. E nunca realmente fez sentido, como Cascavel podia parecer tão irresistível no começo, e tão inatingível no fim. Cascavel era selvagem, devassa, malévola e frívola, mas ainda capaz de me convencer a continuar tentando conquistá-la. Ou, ao menos, de me tornar alguma parte dela.
Só que ao mesmo tempo em que Cascavel era agitada e irredutível, ela também soube ser compreensiva. Porque mesmo quando estava me fazendo chorar, sofrer ou duvidar de que esta mudança ainda iria valer a pena, ela cessava por alguns instantes até que eu pudesse entender que, eventualmente, tudo o que ela estava fazendo não era em vão. Eu precisava mesmo apanhar para aprender algumas sérias lições de vida, e precisava ser largado sozinho pelos cantos para que eu pudesse entender exatamente o quanto valem mais as boas companhias, do que o eco das pessoas vãs. E pouco a pouco, ela me ensinou tudo aquilo que me diziam que ainda me faltava aprender sobre relacionamentos, companheirismo, amizade e amor. De um jeito bastante drástico e rude às vezes, mas sempre visando pelo melhor.
Foi ela quem me ensinou que dias ruins passam, e que eu iria adorar muito mais o amanhã.
E é por essas e muitas outras lições que eu sempre carregarei comigo, que eu finalmente fui capaz de tomar mais uma grande decisão: Cascavel sempre será um lugar muito especial para mim, mas não para sempre. Ela me ensinou que as coisas não acabam, mas mudam. E depois de tantos ciclos que se fecharam, e de infernos que superamos, e de momentos que compartilhamos, é justo afirmar que o que Cascavel e eu tivemos foi, sem dúvida, inesquecível. Pelo menos, para mim. E só o que eu posso esperar agora é que ela não se esqueça de mim também, e de tudo que eu inocentemente gosto de pensar que também fiz por ela ao longo dos anos.
Talvez não seja possível mudar uma cidade, então que seja válida a mudança que ela possa fazer por você.


Dedicado à cidade, e as pessoas que encontrei nela. Obrigado por tudo.

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