Faz
frio em Cascavel.
Cinco graus, pra ser mais exato. E eu lembro do meu sofrimento durante o
primeiro inverno que passei aqui como se fosse... Mentira, eu não lembro. Já
faz quatro anos, quem se lembra dessas coisas? Quer dizer, eu costumava
lembrar, assim como costumava sentir as coisas, as pessoas e a vida de uma
maneira muito diferente. Com um grau de vulnerabilidade bem mais elevado, enquanto
hoje parece que não passo mais dos cinco graus também.
Acontece que depois de quatro
invernos em Cascavel – sem contar as geadas fora de época que atingiram o Oeste
do estado e a região central do meu coração – eu me percebo agora quase tão
frio quanto a cidade. E o pior: distorcidamente confortável com o frio. Capaz
de enfrentar cinco graus de temperatura lá fora da mesma forma que encaro as
coisas, as pessoas e a vida: com desdém, indiferença, incredulidade e no máximo
duas blusas. Eu esfriei consideravelmente a medida que a cidade se afunda no
gelo entre Julho e Setembro; a diferença é que enquanto as flores renascem em
Setembro, minha descrença parece ser atemporal.
O que é o frio? É sentir-se
desamparado, climaticamente ameaçado e desesperado para reencontrar o calor.
Agora, o que é sentir-se frio? Não seria quase a mesma coisa, só que com a
geada acontecendo de dentro pra fora da gente? Eu sempre adorei o frio; a época
perfeita do ano em que ficar dentro de casa não é mais opcional, mas
preferível. A época em que sair pelas ruas é desaconselhável e continuar
debaixo das cobertas é o passatempo favorito da criançada de 0 à imortalidade. E
eu já deveria ter desconfiado disso há quatro anos, mas estava ocupado demais
tentando não me mexer depois de finalmente ter conseguido me acomodar meio a
três cobertas deitado na cama.
Enquanto sentia paixão pelo inverno,
sentia horror pela ideia de me tornar frio, insensível às coisas, as pessoas e
a vida. Não poderia haver nada pior, e minhas crenças foram comprovadas quando
comecei minha faculdade de Psicologia e erroneamente associei todos os meus
temores à uma só abordagem: o Existencialismo, ou o conceito de ser um
terapeuta ridiculamente neutro à realidade e extremamente determinado à
encarregar seus pacientes a assumirem as responsabilidades de seus devidos
atos, por mais inseguros e desamparados que eles pudessem se sentir. Qualquer
semelhança é mera coincidência, mas é possível que eu esteja exagerando. O frio
me enlouqueceu.
Eu sempre temi o Existencialismo.
Começou há quatro anos com uma professora tão experiente e eficaz quanto era
assustadora e inescrupulosa frente ao meu potencial suicida imaginário, e se
arrastou até o ano passado quando chegou a hora de escolhermos o que queríamos ser
quando crescêssemos: Psicanalistas alucinados, existencialistas tiranos ou
comportamentalistas do bem. À princípio optei pela Comportamental devido à
minha crença na análise do comportamento como mecanismo de mudança e meu
otimismo que até então havia sido muito requentado, mas não tinha perdido o
calor ainda. Isto é, até as coisas, as pessoas e à vida acontecerem de novo.
Confesso que eu perdi o otimismo, a
esperança e o amor-ridiculamente-inatingível-porém-gostoso-de-se-sonhar que me
moviam através das coisas, das pessoas e da vida, e quando eu finalmente me
toquei disso já era inverno de novo. E a maior surpresa não foi perceber que eu
já não sentia mais frio na minha pele como há quatro anos, mas o quanto eu já
não sentia mais nada por nada.
Eu perdi minha crença no comportamento
e passei a viver no aqui-e-agora, questionando os outros e a mim mesmo sobre “o que você vai fazer com isso?” e deixei
de responsabilizar os outros pelas minhas escolhas – e me afundei loucamente em
angústia enquanto isso. Então eu me vi no espelho, me preparando para enfrentar
os cinco graus lá fora, usando nada além de duas blusas e um olhar crítico, e
foi aí que eu percebi: não sei se quem venceu foi o ser ou o nada, mas eu
definitivamente me perdi.
Nada me aterrorizava mais do que a capacidade
de contemplar as coisas, as pessoas e a vida com nada menos do que esperança.
Mesmo que eu perdesse o resto, sempre havia amor para recomeçar e mais uma
série de músicas que me lembravam que eu ainda era eu, que o amor está vivo e
que a felicidade está há cem lágrimas de distância. E foi aí que meus cinco
graus de repente se chocaram com um fato ainda mais frio: a verdade de que eu
jamais ouviria de você as palavras que eu realmente quero ouvir há quatro anos.
E doeu mais do que todas as coisas, as pessoas e a vida já haviam me ferido até
então.
Por um lado foi bom. Me fez usar uma
terceira blusa hoje, e me fez perceber que meus sentimentos não derreteram com
a Primavera passada, mas mantiveram-se preservados no gelo da minha alma e
finalmente encontraram um jeito de me reanimar. Porque apesar de você parecer
toda quente e aconchegante, foi você quem me deixou frio. E apesar do meu olhar
crítico no espelho, eu definitivamente não perdi o meu afeto.
Os existencialistas que me desculpem,
mas eu ainda não estou pronto para enfrentar o mundo sem levar em conta o
comportamento dos outros. Sou humanista demais para isso, mas na falta desta
abordagem na faculdade prefiro me enrolar em três cobertas e agradecer à Deus e
a análise funcional, que sempre veem muito mais além do que eu ainda sinto às
vezes.
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