O
que é intimidade? É o que separa os colegas dos amigos, e o que diferencia
amigos de irmãos que você escolheu para si. E pra ser bem sincero, tudo que vem
com isso é muito bom. A facilidade com a qual eu jogo minha chave pela janela
porque estou com preguiça de ensinar a eles como funciona o interfone
problemático do meu prédio e já deixo a porta aberta para entrarem, é a mesma que
eu tenho para dizer a eles quando algo está errado. Na verdade eu nem preciso
dizer nada, porque um silêncio inesperado, um olhar torto, uma piada que eu
engoli em seco e às vezes até mesmo uma vírgula fora do lugar (ou uma ausência
de qualquer palavra que me ajude a expressar o que está acontecendo) já servem
para me delatar e para pedir ajuda a eles por mim. Pensando bem talvez eu não
tenha tanta dificuldade assim em pedir ajuda, porque em se tratando de amigos e
pessoas ao meu redor para me socorrerem em momentos difíceis, eu ando muito bem
acompanhado.
O problema em dar intimidade para
que as pessoas entrem na sua casa, na sua vida e no seu coração e deixar que se
sintam à vontade é que, bom, é uma merda. É só dizer que não tem problema em
derrubar migalhas no chão, ou esquecer de usar o porta-copos da mesinha de
centro às vezes, ou não fechar a porta da geladeira direito, ou zoar meu
Facebook quando eu esqueço ele aberto... De repente lá se foram as regras, o
controle, o bom senso e alguns copos que foram quebrados entre uma festa e
outra. Entre a intimidade e o respeito, existem subníveis de ousadia e
imprudência que, querendo ou não, fui eu quem permiti que rolassem soltos assim
como os parafusos da cortina da sala que há tempos ameaçam a cair. Porque não
existe intimidade sem abrir mão dos seus limites para que outra pessoa possa
realmente entrar não só na sua casa, mas na sua vida e no seu coração também.
O pior não é nem a bagunça em si,
mas os cacos de vidro que se acumulam a cada prato quebrado, os sacos de lixo
que se amontoam depois de cada jantar, os DVDs que ficam guardados no saquinho
errado a cada noite de filmes... Como se os limites, ao contrário da zoeira,
deixassem de existir. E de repente quem você convidou para se sentir a vontade
aqui já não te faz sentir tão a vontade com eles por perto. Intimidade tem um
preço, e pode ser muito alto caso você não esteja acostumado a abrir mão de
outras comodidades como controle ou privacidade.
Eu não gosto de arrumar a bagunça,
mas adoro receber todos em casa. A verdade é que eu gosto de ser o anfitrião, o
que serve Coca-Cola para os copos de todos, o que fica com a espátula em mãos
para alcançar o seu pedaço de pizza, o que prepara a cabeça do arguile, o que
deixa a cerveja e a vodka gelando um dia antes de usarmos, o que grava os
filmes em potencial para assistirmos, e o que sempre tem os ingredientes para
tereré em estoque, porque nunca se sabe quando vamos precisar de uma conversa
lá fora na sacada. E faz bagunça sim, até demais. Suja o chão, mancha as
paredes, estraga os móveis, derruba as cortinas, risca os vidros, quebra os
copos...
Acontece que as mesmas pessoas que
já não precisam mais de convite para entrar na minha casa são as mesmas que não
precisam mais que eu diga que não estou bem. São as pessoas que há muito tempo
deixaram de ser só colegas, e que já aprenderam a pegar a chave quando eu a
arremesso da sacada. São as pessoas que sabem aonde procurar comida e aonde a
cerveja está guardada, e quais copos podem usar sem medo de quebrá-los e me
ouvir brigar com eles. Eles sabem que podem se sentir à vontade aqui, porque a
verdade é que apesar de morar sozinho, eu não vivo sem eles. Uma deles até se
mudou para cá, e foi só abrir a porta, a vida e o coração por inteiro para um
que de repente ficou fácil confiar de novo em qualquer um que valorizasse o que
eu construí aqui e, mais importante, quem eu sou.
Eu não gosto de arrumar a bagunça,
mas preciso admitir que ela não se fez sozinha. E se algo é tirado do lugar,
certamente foi porque eu permiti. E uma vez que eu aprendi a permitir que as
coisas não precisavam ficar sempre no lugar, esta casa nunca mais ficou vazia.
E tanto eu quanto meus amigos aprendemos a conviver quase diariamente com o
melhor e o pior de nós mesmos, desde a intimidade até a desordem. É isso que
nos fortalece, e é isso que me faz agradecê-los sempre que aparecem correndo
não só quando eu preciso, mas quando estamos todos sozinhos em cantos
diferentes da cidade. Por que não assistimos um filme? Pedimos uma pizza,
tomamos um tereré na sacada. Deixa a porta aberta porque tem mais gente
chegando, e pode ficar à vontade.
Quem entrou na minha vida e me
aguentou até agora tem todo o direito de colocar os pés na mesinha de centro e
relaxar. Sinta-se em casa.
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