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Pra não dizer que não falei das flores


            É sempre a mesma coisa. Toda vez que estou prestes a embarcar no ônibus vindo de Foz do Iguaçu com destino à Londrina, eu sinto algo que me detém. Algo que me faz não querer entrar no ônibus e sentar na poltrona do lado da janela, porque se tem algo que eu inexplicavelmente gosto nessa vida é viajar de madrugada com os fones de ouvido sussurrando minhas trilhas sonoras nostálgicas prediletas enquanto olho para a noite lá fora como se fosse uma cena de videoclipe melancólico dos anos 90. Mas tem um primeiro instinto que não sente vontade nem disso.
            Não é medo, porque eu sei o que me espera depois de cinco horas de viagem e de prolongamento do encurvamento crítico da minha coluna que o banco do ônibus me proporciona. Eu vou chegar em casa, reencontrar as melhores mães do mundo me esperando ansiosamente para tomarmos café, para me perguntarem como estão as coisas em Cascavel e para criticar minha roupa mal passada, meu rosto cansado e meu cheiro de bebida. Porque outra coisa que eu gosto, só que com exímios motivos, é de sair com os amigos antes de embarcar naquele ônibus. E é exatamente isso que momentaneamente me impede de ir.
            É a saudade imediata que me atinge diretamente e impiedosamente no coração de deixar Cascavel e as pessoas seletas com as quais ainda tenho a sorte de conseguir me relacionar para trás. Porque não foi fácil encontrá-las, tampouco mantê-las em minha vida. Eu não sou fácil, mas pra falar a verdade eles também não são. Cada um com sua mania, sua frescura, sua história. Mas a gente se encontrou e tem se dado muito bem. Isso me faz feliz. Tão feliz que quase me impede de sair de casa para, bom, voltar para casa e visitar o outro lado da minha vida. Completo com as pessoas que me fizeram feliz um dia e, apesar dos apesares, da distância e da bagunça destrutiva que eu sou, ainda me fazem feliz.
            Desde a família em que eu nasci, com as melhores mães do mundo, até a que eu também criei lá para mim, com os melhores amigos do mundo. Os amigos que acordam às 6h da manhã para me buscar na rodoviária e me esperam com um tereré em uma mão, um charuto em outra, e uma rota em mente para a feira mais próxima para tomarmos café ou para assistirmos o sol nascer nas margens do lago da cidade. São pessoas desse tipo que eu estou falando, e ao mesmo tempo em que sinto receio em revê-las, também sinto receio em deixá-las toda vez que preciso voltar. Quando o fim de semana ou as férias ou os feriados estendidos acabam, sempre chega a hora de embarcar de novo. De sair de casa para voltar, bom, para casa.
            Por mais que eu continue revivendo meu passado a cada viagem, Londrina nunca é a mesma quando eu a reencontro e por muito tempo isso me assustou. Provavelmente da mesma maneira em que me assusto quando ainda estou aqui, em Cascavel, e percebo minhas pessoas seletas, os melhores amigos do mundo, se distanciarem em seus compromissos, suas manias, suas frescuras e suas histórias. E do mesmo jeito que eu sinto receio em deixar Londrina ou Cascavel, eu sinto receio por ter que deixá-los irem. Eu sei que Londrina ainda está lá para mim, completa com as minhas pessoas, minhas ruas, minhas histórias e meus devaneios em janelas ao som das músicas mais melancólicas que eu já fui capaz de conhecer e reorganizar em uma só lista.
            Mas as pessoas mudam, cidades vem e vão, e por mais que não seja o medo que me impede de embarcar na vida... Mentira, é o medo. Medo de não saber se vou chegar. Medo de não saber se vou voltar. Medo de não encontrar quem eu espero rever. Medo de perder a chave de casa. Medo de não ser reconhecido. Medo do desconhecido. Medo do desconhecido não ir com a minha cara, me dar um soco no estômago, me envergonhar por ter considerado que eu poderia ir além da minha zona de conforto, me empurrar de volta pro ônibus e me mandar de volta para onde eu vim ou simplesmente para qualquer outro lugar mais longínquo ainda. Tipo Carapicuíba ou a puta que o pariu. Apesar do medo, da psicose afiada, da paranoia constante com o que o ônibus pode encontrar ou não pelo caminho, eu sinto que tive sorte de conhecer alguns dos melhores lugares do mundo, e de ter encontrado neles algumas das melhores pessoas. E nem precisei ir muito longe do Paraná para isso.
            O novo me assusta. Mais do que meus amigos não atenderem minhas ligações, ou de quando o ônibus misteriosamente para no meio da estrada para fazer um nada (desde pesagens à meia note até paradas para refeições que ninguém desce pra fazer) que demora trinta minutos, ou de perder as melhores anos da minha vida por me preocupar demais com o que fazer deles. Tenho uma facilidade decepcionante para fugir do que não é familiar e me esconder nas margens do meu tédio existencial, e confesso que até tenho a audácia de reclamar disso. Pessoas diferentes me incomodam antes mesmo que eu as conheça. Lugares novos me parecem mais distantes do que realmente são, provavelmente porque eu ainda não conheço o caminho ou a empresa de ônibus que pode me levar até eles.
            Felizmente meu medo do desconhecido ultimamente não passa de uma hesitação momentânea. A mesma hesitação de embarcar no ônibus que, por mais que eu já conheça bem para onde ele vai me levar, tudo pode acontecer em seu caminho. Para não dizer que não falei das flores, eu fui pra casa e voltei pra casa (?) bem melhor. E hoje fez sol, o que me faz querer anunciar oficialmente que a Primavera começou. Só não sei o que vem pelo caminho, mas até quando ele é longo e tumultuoso, a vida não me desaponta. Quando se percorre a vida através de músicas tristes e olhares semi-profundos em janelas de ônibus, você percebe que não há nada que não possa melhorar.

            Esses momentos passam, e no fim a gente sempre embarca.

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