Pra quem não viu:
***
Eu sofri um acidente.
Sabe aqueles dias em que você acorda e tem certeza de que vai ser só mais uma
rotina corrida e atarefada? Com trabalhos à fazer, provas pra estudar,
consultas pra ir, compromissos pra zelar e, por que não?, roupa pra passar. E
entre uma coisa e outra, eu estava andando pela rua quando aconteceu. Caiu uma
telha em mim. É, uma telha. De amianto. Maior do que eu, mais pesada do que eu,
aterrissou na minha cabeça e me deixou no chão no meio do calçadão de Cascavel
em plena tarde de Segunda-Feira. É. Pra variar, não ia ser um dia normal.
Fui
socorrido por pedestres que pareciam estar mais apavorados do que eu. “Moço, você precisa que a gente chame uma
ambulância?”. Meu instinto natural de autosobrevivencia contra a vergonha
daquilo tudo era maior do que o meu físico, mas minha perna ensanguentada
simplesmente venceu minhas vaidades e sim, é melhor chamar uma ambulância,
senhor. Aguardei sentado em uma cadeira de rodas cercado de pedestres
preocupados e câmeras de repórteres que surgiram do nada que continuavam a
examinar meus arranhões e machucados, enquanto eu estava mais preocupado em
desmarcar meus compromissos do resto da tarde. É, eu quase morri. E por mais
que essa seja a única desculpa sólida para deixar pessoas esperando, eu fui
criado melhor do que isso. Em questão de instantes meu pai já estava no local,
pouco antes da ambulância me levar para o hospital, enquanto eu respondia as
mensagens dos meus amigos, que aos poucos iam descobrindo o que tinha
acontecido. Apesar de ter desabado parte de um prédio da minha cabeça, eu
estava consciente. Respondi as perguntas dos paramédicos calmamente, estiquei a
perna para tentar conter todo aquele sangue e fui levado para o pronto-socorro
que, pela demora, ainda não estava pronto.
Fui
levado para dentro do hospital em outra cadeira de rodas, porque não aguentava
ficar de pé naquele estado. Durante minha longa espera no corredor, conheci uma
garota que também havia se acidentado. Acidente de moto, e não era a primeira
vez. Tanto não era, que já sabia como operar a maca em que estava deitada e
retirar o apoio para o pescoço que lhe deram. E começou a conversar comigo,
apesar da sua dor, para me aliviar um pouco da minha. Lá estávamos nós, a
garota deitada em uma maca com o pé quebrado e o garoto na cadeira de rodas com
a perna ensanguentada, conversando sobre o tempo, sobre a vida e sobre como não
queríamos perder a semana de provas. Estava sendo um dia daqueles.
Fui
examinado por quatro médicos que me disseram que eu poderia ter morrido. Que eu
deveria ter morrido, dado o tamanho e
peso da telha e o fato de que AQUILO CAIU NA MINHA CABEÇA! Mas disseram que eu
estava bem para quem tinha passado por aquilo, e se apressaram para fazer um
curativo na minha perna antes que começasse a sujar o chão que a senhora da
limpeza estava limpando. Quando os médicos saíram de perto, meu pai perguntou
como eu estava. Eu parei por um instante para responder.
-
“Eu não sei. Eu poderia ter morrido,
pai...”
No
meio de um corredor, cercado de enfermeiras, policiais, paramédicos e da minha
amiga acidentada, eu chorei. Chorei por tudo que não sabia dizer, tudo que não
sabia sentir, e pela vida que, por mais incrível que parecesse, eu ainda tinha.
Não demorou muito para que o meu mecanismo de defesa natural contra essas
coisas sérias tomasse conta, e já pudesse fazer piadas sobre convidar meu pai
para apostar uma corrida ali mesmo no hospital. Inclusive comecei a brincar de
balanço com a cadeira de rodas, até que a senhora da limpeza mandou parar porque ela precisava terminar aquela
limpeza logo e minhas rodas estavam atrapalhando. Mas durante aqueles instantes
realmente pairou sobre mim a possibilidade de que, durante um dia qualquer, uma
Segunda-Feira enfadonha, corrida e com prova pra estudar ainda, eu poderia ter
acabado. Só que não.
Em
seguida fui examinado por um técnico de Raio-X que me deu o que foi
provavelmente um dos maiores sustos da minha vida. Ele tirou a radiografia, a
examinou por alguns minutos, depois virou para mim e tomou o fôlego mais
demorado que eu já havia presenciado para dizer: “É... Você teve muita sorte.” O corte que a telha provocou na minha
perna foi exatamente à milímetros de um osso, mas não passava de uma
escoriação. E pelo resto do meu dia naquele hospital, as pessoas, os médicos e
quem mais ficasse sabendo da história e passasse por mim dizia que eu tinha
muita sorte. Também começaram a me chamar de “menino da telha” toda vez que me
chamavam para ser examinado de novo.
Quatro
horas, três pontos, duas vidas um monte de remédios depois, eu voltei para
casa. Avisei a todos que eu estava bem, que a perna estava doendo mas que eu
jamais iria ficar em casa repousando e perder a prova. Meus amigos brincaram,
fizeram ainda mais piadas e me abraçaram, tudo como forma de alívio. Eu estava
bem, mas não estava aliviado. Porque até agora é difícil dizer exatamente o que
tudo isso significou. A queda, a telha, a menina na maca do lado, a cadeira de
rodas, a ambulância, os três pontos na perna. Eu acredito que tudo acontece por
um motivo até mesmo quando você não sabe o sentido daquilo na hora. Mas eu
sinceramente ainda não consigo tentar adivinhar o porquê disso tudo.
Eu
tive muita sorte, e é nisso que eu vou me amparar por enquanto. Nisso e em
qualquer coisa que possa me apoiar enquanto eu ando, porque ainda vai demorar uns
dias para a perna voltar ao normal. Eu já disse que minha vida é engraçada e
certas coisas só acontecem comigo, mas cá entre nós, Universo, tudo tem limite.
Quer dizer, quase tudo. Pelo que parece, eu sou imortal. Boa sorte da próxima
vez, também.
Comentários
Postar um comentário