A verdade é que nós morremos um pouco
todos os dias, de um jeito ou de outro. Nos só não pensamos muito nisso porque,
bem, não dá tempo. Entre tentar lembrar de tudo que você precisa comprar no
mercado quando sair do trabalho e passar por lá pra ir pra casa, pra depois
sentar em frente ao computador e tentar se concentrar para fazer um trabalho ou
terminar aquele relatório de estágio, e ainda retornar a ligação da sua mãe que
você não ouviu porque o trânsito estava muito barulhento, sem esquecer de
avisar os seus amigos de que você já chegou em casa e dali meia hora eles já
podem passar pra te buscar para vocês saírem... É, não dá tempo. E mesmo que dê
tempo, ninguém realmente considera isto como algo tão sólido quanto a louça
suja ou a roupa pra passar. Nós sabemos que vai acabar, uma hora ou outra, mas
não temos muita noção quanto a fato de que pode ser amanhã, ou de que poderia
ter sido Segunda-Feira.
Mas
nós ficamos doentes e elaboramos lutos todos os dias, por mais que nossos
corpos continuem em pé. Abrir mão do passado que não volta, admitir que amamos
a mulher errada, confessar que estamos errados e que precisamos de ajuda,
chorar pelo amor que nos deixou, tudo isso nos mata um pouco a cada dia.
Diminui a nossa alma e a nossa esperança de nos sentirmos completos de novo um
dia, e acima de tudo isso nos engana sorrateiramente por nos fazer pensar que
algo assim foi o pior que poderia ter acontecido. Não foi. Não é. Pior do que
encarar o fim de um amor, é ser surpreendido pela realidade de que nós podermos
ser os próximos.
Eu
ainda não consigo atribuir algum sentido para isso, e talvez simplesmente nem
haja algum. Aquela queda tirou minha semana dos trilhos e me obrigou a visitar
médicos, enfermeiras, hospitais e a aprender a lidar com receitas, remédios e
ataduras. E também me fez escutar muito coisas do tipo “Você tem muita sorte” ou “Você
nasceu de novo”. E enquanto todos se comoveram pelo que poderia ter acontecido,
confesso que enquanto estava ali, deitado na calçada e sem noção do que havia
desabado em mim, meu primeiro instinto foi o de levantar e continuar andando. O
único detalhe que me impediu foi a perna ensanguentada e o desespero dos outros
pedestres ao meu redor.
Os
primeiros dias foram estranhos. Parecia que essa perna enfaixada não era minha,
que o garoto nas notícias não era eu, e que o nome das receitas médicas não era
o meu. É difícil acreditar que eu poderia ter acabado, especialmente por conta
de tudo que eu ainda tenho pra fazer. Eu ainda preciso terminar de corrigir meu
relatório de estágio. Preciso desentortar o varão da cortina da sala de estar.
Preciso perder mais uns 3kg. Preciso pagar o carnê da festa de formatura. Preciso
ir buscar a camiseta que deixei separada semana passada em uma loja no shopping
porque o cartão de crédito não tinha virado de mês ainda. Preciso beber uma
cerveja de novo. Preciso dizer que te amo...
Depois
de uns dias, parece que tudo voltou ao normal. Claro, eu ainda tenho
dificuldades para andar ou subir escadas, e meu repouso em prisão domiciliar
não me deixa mentir sobre isso. Mas meus amigos já fazem piadas sobre isso só
pela facilidade de fazer piadas. Minhas conversas não são mais voltadas somente
para a minha perna e o meu bem estar, ou que indenização eu pretendo tirar
disso. Sinceramente, pessoal, eu só quero que isso passe. Eu só estava andando
pela rua quando aconteceu, e depois que aconteceu eu realmente estava pronto
para me levantar e continuar andando. Eu ainda sou lembrado diariamente do que
aconteceu toda vez que preciso trocar o curativo da perna. E apesar de ainda
doer, a perna está começando a parecer com uma perna de novo. Então não tem
porque prolongar isso. Exceto por este texto.
Por
mais que eu tente, eu não consigo me comover muito com o que aconteceu. Porque
eu estou bem. Bem o bastante para ter desmarcado compromissos enquanto era
socorrido por paramédicos, para avisar meus amigos que eu não poderia estudar
com eles à tarde porque eu precisava ir ao hospital tirar uma radiografia, e
para ir fazer prova na faculdade à noite mancando e levemente desorientado. Mas
como desorientação não é nada estranho pra mim, desconsideremos este último. Estas
são as minhas últimas palavras sobre o assunto. Porque eu estou bem, enquanto a
vida seguiu seu rumo e aconteceu de cair sob outras pessoas, próximas das
minhas pessoas, que não tiveram muita sorte e não nasceram de novo. Essas, sim,
me comovem.
Eu
estou bem. A vida voltou ao normal, exceto pelo atestado que não me deixa sair
de casa. Morrer muda tudo. Quase morrer não muda nada, mas pelo menos eu
sobrevivi por mais um dia. Agora é só uma questão de dias para reaprender a
andar. Ah, a ironia.
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