Um dia desses eu resolvi criar vergonha na cara e fazer a barba, e tive uma
surpresa. Quando o meu desmatamento facial terminou, já não era mais o meu
resto que eu via no espelho. Era o seu. Depois de anos deixando a barba crescer
pra facilitar o discernimento das pessoas entre eu e você, eu descobri que não
adiantava nada. Nós somos iguais. O que não deveria me surpreender tanto, se
tudo o que eu realmente precisava fazer não era nem fazer a barba e me rever no
espelho, mas só olhar para você entre um sermão e outro, para perceber
exatamente quem eu sou.
Nós
brigamos o tempo todo. É assim que as pessoas nos veem, e às vezes é assim que
eu mesmo me sinto quando falam de nós. Somos teimosos, impacientes, grosseiros,
passionais, exagerados, sarcásticos e criticamente destrutivos. E não só um com
o outro, mas com quem ousar nos desafiar, achando que sabe mais do que nós.
Isto também explica porque não existe um consenso entre nós exceto quando cada
um sai andando pra um lado cantando vitória silenciosamente, enquanto deixa o outro
falando sozinho.
Mas colocando toda a teimosia de
lado, depois de ter feito a barba e ter visto seu rosto no meu espelho, eu
comecei a realmente tentar enxergar você e tudo isso que você faz no seu dia a
dia tão corrido e cansativo. Eu só costumava ver você passando reto por mim,
dando um “bom dia” automático
enquanto se dirige ao seu escritório para derrubar todos os seus problemas em
cima da mesa e esquentar a cabeça enquanto tenta decidir qual dos incêndios você
vai tentar apagar primeiro. O que eu não enxergava era o homem batalhador,
determinado a fazer jus aos seus compromissos e prezar pelo bem da sua família
e de todos os funcionários e terceiros que dependem do seu trabalho, do seu
suor, da sua fadiga. Eu não enxergava este homem, e infelizmente confesso que
também não me interessava por vê-lo.
Porque se
eu me arriscasse a enxergá-lo na totalidade do seu caráter indiscutivelmente
irrefutável, talvez eu me assustaria quando percebesse que não estava apenas
diante de um homem decidido a dar conta de tudo e de todos que dependem dele,
mas do meu próprio futuro. Como se o Marcio que passa correndo por mim dando um
“bom dia” automático enquanto sai em
direção à batalha árdua e impetuosa de mais um dia não fosse mais do que o Igor
mais acomodado à sua teimosia e sua insensatez, mas definitivamente motivado
por seu senso de justiça e sua força avassaladora. Eu tenho medo de enxergar
você, pai, porque não só eu penso que ainda não estou pronto para chegar perto
de me tornar um grande homem como você é, eu também não quero assumir o seu
posto caso quando você não estiver mais aqui. Nem que seja pra passar reto por
mim quando voltar ao trabalho.
E eu sinto que você não me vê
também. Como se ao passar reto pelo pequeno garoto inconsequente e imaturo que
curiosamente se parece com você, seria como se nada daquilo realmente tivesse
algo a ver com você. Às vezes eu acho que você me vê como alguém que também
sente medo, mas que sofre por saudade ainda mais do que isto. Saudade pelo
garoto que foi antes de se tornar no super homem que dá inúmeras voltas ao
redor da cidade, correndo atrás de tudo que os outros não estão dispostos a
alcançar, somente para garantir que tudo e todos fiquem bem. Saudade pelo
garoto que já não existe mais, a não ser por aquele que vos fala e que não
herdou somente sua calvície precoce e seu nariz avantajado, mas também o legado
de um nome e a reputação de um guerreiro.
Você é
mais do que um homem. É um super herói que garante a paz e a segurança de todos
que contam com você para socorrê-los, por mais que isto te canse, te desgaste e
te faça parar e pensar se tudo isso vale a pena. Te faz pensar se tem alguém
não só olhando como quem não tem nada a ver nada, mas que enxerga e reconhece o
papel fundamental que você tem nas vidas de todos ao seu redor. Você carrega o
mundo nas costas e salva o mundo todos os dias, mas sabe bem no fundo do seu
coração machucado e exausto que nem todos são gratos. Mas eu sou. Talvez eu não
demonstre tanto quanto deveria, ou tão bem quanto poderia, ou tão regularmente
enquanto você ainda está aqui neste mundo, e eu sinto que tanto eu quanto você
consideramos um “obrigado” como uma
palavra capaz de facilitar o nosso sono e tranquilizar a nossa alma.
Às vezes eu acho que você não
existe. Não é possível que alguém seja tão teimoso, tão impaciente e tão
insensato, enquanto ainda consegue ser incansável, imbatível e ridiculamente
trabalhador para garantir não só a paz mundial,
mas a paz de todos aqueles que te cercam e, felizmente, a sua própria
paz de espírito também. Às vezes eu acho que não há como existir alguém tão
irônico, tão sarcástico, tão bravo, e ao mesmo tempo tão bom. Tão carinhoso à
sua maneira, mas que infelizmente peca ao tentar passar seu amor adiante porque
não consegue disfarçar que está ferido, mas que ainda está de pé e disposto a
continuar em frente. Voando alto, com a cabeça erguida. Mas aí eu me lembro de
um detalhe: eu também sou assim. Eu sou o pequeno Marcio, encarregado de dar
continuidade ao legado de uma família, de um nome, e de um homem que fez do seu
trabalho, seu suor e sua luta diária uma lenda inspiradora a ser seguida. E
você é real, e é tão bom quanto um Igor. Não é pra menos; foi você quem me
criou.
Eu te
amo, pai. Enquanto você estiver aqui para salvar o mundo todos os dias, eu sei
que nós ficaremos bem. É uma honra ser capaz de ver você no meu reflexo, e só
não digo que quero ser como você quando crescer, porque algo me diz que já
estou chegando perto.
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