Nós
vivemos em uma era de coisas. De querer cada vez mais coisas. De gostar de
pessoas por causa de coisas. De tentar usar coisas para ocupar o vazio deixado
por outras coisas. Por outras coisas de outras pessoas, que acabaram indo
embora por causa de, bom, outras “outras
coisas”. E quando isso acontece, o valor que associamos a essas coisas
acaba sendo maior, porque passamos para elas tudo aquilo que aquelas pessoas
significavam, mas que agora não estão mais aqui para matarem a nossa saudade.
Não. Só o que sobraram foram as coisas, que de certo modo se transformam numa
espécie de tesouro deixado para trás por essas pessoas. Tesouros que não
conseguimos jogar fora, nos auto-censurando ao sequer pensar nisso pois,
afinal, o que fulana iria pensar de me visse jogando isto fora? É como se eu
estivesse jogando fora o resto de esperança que ainda tenho em nós. Engraçado
como nos livramos tão facilmente das pessoas, enquanto as coisas que ficam – as
coisas que realmente podem ser jogadas fora – permanecem por muito mais tempo.
Jogadas em cantos obscuros da casa e do nosso coração, mas que fingimos não ver
porque – por algum motivo – ainda não estamos prontos para lidar com isso. Como se coisas fossem tão complicadas assim.
Baseado nesse espírito assombrador
de ex-pessoas e as coisas que deixaram para trás, foi criada a lei do desapego.
Desenvolvida em meados do século XXI por jovens que recém venceram o desânimo
de voltar a viver – e reaprender a envolver-se com, bom, coisas novas – e
decidiram levar a famosa faxina de primavera a um novo patamar. Vão-se as
velharias, ficam as novidades. Vão-se as amarguras, ficam os sorrisos. Toda vez
que a minha mãe vem pra Cascavel e se hospeda em casa – e toma posse do meu
quarto porque a cama é melhor e, bom, porque aparentemente ela ainda tem
autoridade pra fazer o que quiser comigo, independente do contexto – ela faz “a faxina”: a limpa de peças antigas do
meu guarda-roupa que não servem para mais nada a não ser ocupar espaço,
acumular ácaros e atrapalhar as peças de roupa dela que precisam de cabides
mais do que meu museu de vestuários precisam de exposição. Como ano passado não
foi diferente, tive que suportar a partilha de camisetas que tenho desde os
tempos apocalípticos da pré-adolescência, calças que continham em si mais
esperança de que eu ainda pudesse caber nelas do que uma real perspectiva dos
meus novos e avantajados quadris de homem, e sapatos que... Ok, não havia
nenhuma justificativa para guardar aquele boot
antigo com os cadarços estraçalhados a não ser por preguiça de mexer naquele
sapateiro. Ok, preguiça e dificuldade de desapego.
O que foi diferente esse ano – e o
que talvez aconteça bastante ao redor do mundo durante o fatídico dia primeiro
– foi que a partilha continuou, mesmo sem as ordens da minha mãe, gritando para
reforçar meu desapego como um general ordena suas tropas a invadir o território
inimigo sem piedade, e se desfazer dos destroços dos outros combatentes sem dó.
Ou então, foi apenas assim que me senti mesmo quando concordei em me desfazer
de cinquenta tons de camisetas cinzas – que foram brancas um dia - que eu havia
prometido a mim mesmo que usaria para dormir. Enfim, independente das ordens do
sargento mãe, havia sido dada a largada para o que viria ser o pequeno passo do
aliviamento do meu guarda-roupa, porém um grande passo para a minha humanidade.
Quando menos percebi, junto aos
tênis velhos e as camisetas rasgadas, também foram embora a dó desnecessária, a
esperança infame e a piedade inútil que eu ainda segurava por pessoas. Pessoas
que estavam de certo modo grudadas naquelas roupas, e sorrindo falsamente nos
porta-retratos da minha estante, e sujando a já frágil santidade da linha do
tempo do meu Facebook. O segundo
passo da minha manifestação pessoal de revolta contra ser contra o desapego
veio de forma virtual. Mais precisamente, ao remover a opção “Desejo receber notificações dessa pessoa”.
O que antes parecia algo tão
mesquinho, tão idiota e tão teoricamente fraco de se fazer acabou me
fortalecendo de maneiras que eu nem pensava que fossem possíveis. Eu não queria
não ver aquilo porque era incômodo ou doloroso, mas porque eu finalmente havia
atingido o estado espiritual de pura indiferença, a apoteose de um “foda-se” bem mandado e o zeitgeist de um bom desapego. Eu não
quero saber da sua vida, porque suas atualizações mesquinhas, idiotas e fracas
estão me atrapalhando a ver outras coisas de gente que realmente me importa. E
coisas novas de gente que eu não conheço ainda.
Mas o
ápice da minha marcha a favor do desapego foi mesmo com aquele guarda-chuva.
Meses atrás quando eu era menos preocupado em ser inteligente e sensato, e mais
preocupado em permanecer jovem e apaixonado, eu conheci alguém. Convenhamos que
era alguém boa. Muito boa. Tão boa que até quis me dar amor em troca quando eu
confessei que era isso que eu sentia por ela. E nós fomos felizes. Ah, como nós
fomos felizes. Até não sermos mais. Até eu perceber que aquilo iria acabar mal,
e até ela me fazer perceber porque eu fiz a escolha certa. Mas entre o nascimento
e a missa de sétimo dia do nosso amor, houve um guarda-chuva.
Um guarda-chuva que ela me fez
comprar quando fomos surpreendidos por uma fria tempestade que nos empurrou
para dentro de um supermercado para esperarmos ela passar. E entre tentarmos aproveitar
aquele tempo para passearmos e sermos bobos juntos, passamos por uma gôndola de
guarda-chuvas. A maioria deles preto básico, e uns dois ou três pretos com
bolinhas brancas. “Amor, compra um desse.
Mas por que logo esse? Porque é
bonito!”. As coisas bobas que fazemos por um amor que está começando são
diretamente proporcionais às atitudes drásticas que tomamos quando ele acaba.
Acontece que mesmo depois do amor ter acabado e da ex ter desgastado toda a
minha esperança de querer voltar a usar aquele guarda-chuva, aquilo continuou
aqui. Jogado em um canto da casa, e só era lembrado quando já era tarde demais
e estava chovendo lá fora e eu ficava entre engolir o orgulho e usá-lo, ou
tentar usar meu orgulho pra não me molhar lá fora. Apesar de todas as coisas
ridículas que eu já fiz nessa vida, eu não deixaria de usar um guarda-chuva só
porque ele simboliza o irônico auge do nosso amor, e o souvenir assombrado que
sobrou dele. E sim, eu sei o quanto dizer isso foi ridículo, e o quanto eu
continuava a ser ridículo por não querer jogar aquele guarda-chuva fora. Até
hoje.
Jogar o guarda-chuva fora não foi só
jogar um guarda-chuva fora, igual se desfazer de roupas velhas não foi só de
desfazer de roupas velhas e tudo mais. Foi um grito de independência, um ato de
coragem e uma prova de desapego que serviu pra ensinar a me desprender de tudo
aquilo que estava empoeirado com saudade e jogado pelos cantos da minha casa, e
me fazia tropeçar em vês de seguir em frente e me concentrar em coisas mais
importantes como, digamos, coisas novas e ser feliz. É com isso que eu me
importo agora, e você pode fazer parte disso ou não, mas coisas não importam
mais pra mim. Apenas ações importam. Companhia importa. Sinceridade importa.
Amor importa. Minha casa não é um mausoléu, e um coração não é lugar para
acomodar teias de aranha. A faxina só está começando, mas já me sinto
respirando bem melhor. A garganta não tranca mais com falsas promessas e
sorrisos tortos. De agora em diante só felicidade cabe aqui.
Coisas velhas não acrescentam nada
se eu quiser ter mesmo uma vida nova esse ano, começando por uma ida à Renner. Preciso de roupas novas.
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