Houve
um tempo em que o amor costumava
seguir uma ordem: duas pessoas se conheciam, se atraiam, se gostavam, se
encontravam, se comprometiam, se envolviam com suas respectivas famílias, se
organizavam acerca do lugar favorito de cada um na cama, se enfrentavam para
que o outro baixasse a tampa do vaso e não apertasse o tubo da pasta de dente
pelo meio, até que finalmente se enrolavam ao redor dos laços sagrados e
sutilmente sufocantes do casamento. Mas depois de duas guerras mundiais,
centenas de revoluções populares e da invenção da pílula do dia seguinte, o
amor não pôde deixar de se abater pela nova ordem mundial e pelo modo causal
que seus usuários começavam a tratá-lo. Foi assim que jantares românticos,
telefonemas de madrugada e demonstrações públicas de afeto foram agressivamente
banidas dos costumes sociais, dando espaço para a marginalização do afeto de
maneiras - para dizer o mínimo - questionáveis.
Eu não sou careta, nem santo, virgem
ou puritano, mas algumas coisas me incomodam mais do que a crise econômica do
país ou a espera pelo episódio em que o Ted finalmente conhece a mãe dos filhos
dele. Sim, eu estou falando de relacionamentos. Não, eu não tenho um. Não tenho
dinheiro pra isso, nem tanto tempo assim. Tenho tênis sujos guardados que
precisam ser lavados a mais tempo do que meu coração está disposto a dar outra
chance a alguém, mas isso não vem ao caso. Mas talvez seja essa mesma inversão
de valores que eu mesmo incorporei - assim como você, sua vizinha, seu cachorro
e mais da metade do elenco da novela das 8 - que me incomoda.
Bem vindo ao século XXI: o amor está
morrendo. Ok, mentira, não está. Mas não há como negar que, se não estiver
morrendo, está ao menos em estado vegetativo, lutando para sobreviver com todas
as forças que ainda tem, enquanto dificultamos as coisas cada vez mais para ele
ao sufocá-lo com um travesseiro com o formato do nosso orgulho ferido. Por trás
de alguém que renegou o amor, o romance e as trilhas sonoras dos anos 90,
existe um orgulho ferido. E nada me tira da cabeça que no centro obscuro e
abandonado desta pessoa, não há um rádio de pilha assombrando "Total Eclipse of the Heart" em seu
peito oco.
São tempos distorcidos os que
vivemos. Tempos em que para demonstrar interesse é preciso, primordialmente,
não demonstrar interesse. Tudo bem que seres humanos tem essa paixão por brincar
com a saúde mental uns dos outros desde a era das cavernas, quando um
cro-magnon enganava o outro a colocar a mão no fogo dizendo que aquilo não queimava.
Até aí eu entendo e simpatizo; o que eu não engulo mesmo é a zoação como forma
de atração. Tudo não passa de um jogo. E, ou você se adequa as regras, ou
continua passando os Sábados à noite em casa acompanhado de um pedido padrão em
uma pizzaria e a televisão ligada com o Zorra
Total no mudo – porque jogar sal na ferida é desnecessário a essa altura.
A primeira regra do jogo é: vale
tudo para chamar a atenção. Tudo é abstrato, incalculável, impensável... E
perfeitamente válido, desde que funcione. Até você conseguir distinguir um
padrão no meio da confusão. Todo caos tem uma ordem; é assim que o Universo
funciona desde a primeira discussão doméstica entre Adão e Eva, e que seus
herdeiros continuam repetindo até hoje – só que pelo Facebook. Se eu te chamar pra conversar agora, a próxima vez
depende de você. Ganha mais pontos quem aguentar o máximo de tempo sem procurar
o outro primeiro. Se procurar primeiro, você não só perde pontos como também
uma parte do seu orgulho próprio.
Segundo mandamento da infame nova
ordem mundial do amor: aquele que puxar conversas torna-se eternamente
responsável por puxar seus respectivos assuntos. Ganhe pontos extras se passar
algum tempo desde a última conversa para a escavação de novos temas; só cuidado
para não secar o solo antes da hora, e cair no vácuo do silêncio constrangedor.
Não odeie o jogador, odeie o jogo.
As pessoas gostam do que não tem. As
pessoas gozam ainda mais por aquilo que não tem. Por isso a nova moeda de troca
para casais que buscam a sonhada estabilidade conjugal não se trata mais de
antiguidades como sinceridade, cumplicidade e - por que não? - amor, mas de
demonstrações de anti-afeto. Com o intuito de conquistar afeto! Sou só eu quem percebe
a incoerência?
Eu não sou do tempo da renascença,
não possui um cavalo branco - muito menos uma CNH ainda - nem tenho mais tantos
sonhos avoados e ilusórios de trombar com o amor da minha vida na rua ou em uma
balada qualquer, mas não abro mão do meu direito constitucional de definir
muito bem minhas relações com as pessoas que fazem parte da minha vida. Amigos,
amigos, tretas à parte. Paixões platônicas deste lado; amores verdadeiros,
permaneçam na preferencial.
Se existem momentos definitivos na
vida da gente, sejam marcos históricos mundiais ou pequenos passos dentro da
nossa própria humanidade, então relações bem definidas nada mais são do que uma
extensão da coerência que cada um deveria manter. Senão em prol do próximo,
então que seja apenas ao seu coração. Agora, isto não significa que eu estou
abandonando o jogo. Só significa que de agora em diante eu não sigo mais as
regras.
Urra... Sempre quiz dizer isso, mas nunca consegui. É bem assim mesmo... Tá foda! Parabéns Igor!
ResponderExcluirSempre quiz dizer isso, nunca soube como... Parabéns Igor. Brilhante.
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