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A barata no banheiro II: a vingança de Clarice


            Eu não acreditei quando a Joyce me contou, mas parece que é verdade. Quando a Clarice (Lispector, para os entendedores menos íntimos) escreveu o romance A Paixão Segundo G.H. em 1964, ela realmente se inspirou em uma barata. Se foi uma barata que apareceu em seu banheiro durante um momento em particular de fraqueza durante uma madrugada de Domingo, como no meu caso, eu não sei. Mas que ela tirou um best-seller disso, tirou, e com isso eu - obviamente - não pude deixar de pensar em mim. E de quando eu finalmente escreveria o meu best-seller sobre a vida, sobre romances... Talvez não necessariamente sobre a barata que apareceu no meu banheiro e as lamúrias existenciais que ela provocou em mim, que por sinal não foram tantas assim. Só o bastante para revisitar todo o meu passado em questão de segundos - como quem é quase atropelado por um ônibus e supostamente vê toda a vida passar diante dos olhos - antes de finalmente conseguir acertá-la com o chinelo.
            O que me fez pensar na seguinte cena: Clarice acorda às duas e meia da manhã com a garganta extremamente seca, resultado do uísque e charutos que compartilhou com suas amigas durante a reunião semanal do seu grupo de luta que organiza em sua casa aos Sábados, duas vezes por mês, com suas amigas da alta sociedade Brasiliense para deliberarem sobre as mágoas e frustrações que seus respectivos maridos lhes causaram, seguido por sessões de brigas em uma piscina plástica cheia de lama designada estritamente para liberação do estresse e da libido reprimida. Além de aliiar as tensões, Clarice ainda defendia a tese de que a lama fazia bem para a pele - exceto, claro, quando ela caia dentro dos olhos.
            Enfim, Clarice se levanta, exausta das lutas e de esfregar sua blusinha favorita no tanque que foi tragicamente manchada em seu último duelo com uma jovem de nariz empinado e ideias questionáveis chamada Martha (Medeiros, para os leigos), e foi para o banheiro para jogar uma água na cara antes de desafiar a escuridão do corredor que leva até a cozinha da masmorra subterrânea de sua casa, onde gostava de passar os fins de semana para usar drogas recreativas sem o olhar curioso dos vizinhos. E então, de repente, ela a vê: desfilando despreocupadamente pelas redondezas dos azulejos azul-bebê que enfeitavam sua casa de banho, aquela barata. A fatídica barata que viria a ser pivô de uma de suas obras mais famosas - que eu só fui descobrir esses dias, mas tudo bem. Em se tratando de clássicos literários, minha educação começou e estagnou com O Pequeno Príncipe por algum motivo. Talvez eu não estivesse preparado para ser cativado por alguma outra obra, e para ser eternamente responsável por isso depois também.
            Clarice soltou um grito que certamente teria acordado seus vizinhos se estivesse na superfície e imediatamente subiu em cima da privada, amedrontada pela presença do inseto rastejante. No entanto, Clarice logo se lembrou do extenso treinamento que recebeu de Pai Mei - o bisavô paterno de Quentin Tarantino que foi irremediavelmente distorcido na adaptação da sua história para o cinema por seu bisneto problemático - e prontamente se colocou na frente da barata para efetivamente dizimá-la. A barata, surpreendida pela agilidade dos quadris artificiais de Clarice, deu um pulo para trás e falou (sim, ela falava!), "Você não pode comigo, velhota. Humanos tolos, pensam que tem algum direito sobre essas construções que fizeram em cima das NOSSAS casas! Só subi porque minhas 367 irmãs estão ocupando os banheiros lá de baixo. Pois agora vou lhe mostrar quem é que manda aqui!"
            A barata abriu suas asas e sobrevoou os cabelos arrepiados de Clarice em um rasante que quase a derrubou, mas foi por pouco - cortesia das técnicas de equilíbrio tangencial herdadas por Pai Mei por seus ancestrais que, curiosamente, manjavam dos paranauês-paranás. Clarice partiu para o ataque e imobilizou a barata com seus crocs cor-de-rosa-com-bolinhas-brancas: fatality! Antes de morrer, a barata chamou Clarice para sussurrar em seu ouvido, agonizando e suspirando apressadamente entre cada palavra: "Curvo-me de um talento maior que o meu, humana... Se puder pedir uma última clemência... Conte ao mundo a minha história..." - "Mas que história?!" - "Eu sou sua bisavó Elisabeth... Seu bisavô me pegou traindo ele com seu melhor amigo e lançou um feitiço em mim... E como se não fosse o bastante, aquele velho rancoroso me prendeu no subsolo para liderar um exército de baratas rastejantes asquerosas que planejavam tomar posse do Palácio da Alvorada no dia 5 de Novembro... Mas você me libertou, minha querida... Sinto muito que tenha descoberto tudo assim... E não se esqueça: com grandes poderes terás também grandes responsabilidades..."
            E morreu nas mãos da bisneta que jamais pôde conhecer, balançando pela última vez suas antenas por toda a eternidade. Clarice secou as lágrimas, levantou-se do chão e decidiu que aquela não era hora para luto. Era hora de ser mais resiliente, próspera e determinada do que nunca. E depois de jogar o que restou de sua bisavó na privada e dar descarga, Clarice voltou para a cama e jurou, antes de dormir: "Não me esquecerei de você, vovó. Sua história será contada..." Claro que Clarice mudou alguns detalhes aqui e ali, pois segundo sua assessoria de marketing, a história original não parecia ter potencial para ser comercializada na Europa. E assim nasceu um dos seus mais famosos romances que eu ainda não li, mas que parece bom.

            Qualquer um que tira inspiração de uma barata no banheiro merece atenção, não acham? Não? Ok...

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