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A camiseta básica


  Você já teve a sensação de que todas as escolhas que já fez na vida foram as erradas? Já? Então senta aqui, vamos conversar.
  Antes de qualquer coisa, preciso confessar que não sou egocêntrico. Quer dizer, não sou tão egocêntrico assim. Mas desde que me conheço por gente, sempre tive essa mania de observar as pessoas, as coisas e tudo mais que acontece por aí, e sem querer acabo vendo um pouco de mim ali. E sinceramente não acho que isso seja de todo ruim, nem de toda originalidade. Porque de acordo com algumas matérias que ando tentando copiar em sala, geralmente o que nos atraí à pessoas e coisas são pequenos fragmentos nossos que vemos refletidos nelas. Logo, as pessoas e as coisas que fazem parte da nossa vida invariavelmente tem a nossa cara, e se tornam uma extensão de quem a gente é. E foi isso que me animou da crise que começou com uma coisa qualquer: uma camiseta básica cinza que comprei por menos dinheiro do que ela valia, mas que vinha acompanhada de outra camiseta básica branca no pacote também. E eram só isso mesmo, um pacote de duas camisetas básicas branca e cinza por tantos reais, no meio de uma pilha de pacotes idênticos em uma gôndola de uma loja de departamentos qualquer. Não havia sentido enxergar alguma metáfora sobre minhas escolhas, minhas extensões de personalidade ou minha vida toda dentro daquela gôndola. Mas a gente é o que a gente é, né.
  Na verdade, não é que aquela camiseta básica cinza refletisse algum aspecto igualmente monocromático e ligeiramente depressivo da minha alma – até porque não acredito que a cor cinza seja tão profunda assim, muito menos que existam outros 49 tons ainda mais escuros. É que eu nunca fui assim, de usar camisetas básicas de uma cor só. Pareciam tão fáceis e sem graça. E se me lembro bem, conforme a vida nos amadurece e aprendemos que, antes de nos enxergarmos nas pessoas, optamos por nos expressarmos por essas coisas chamadas roupas para daí descobrirmos quem se encaixa com essa estampa, e quem eventualmente é atraída por mim. E eu cresci com essa noção de que camisetas precisam chamar a atenção, ou no mínimo ter algo desenhado ali que sirva de exemplar primário da minha personalidade, independente dos aspectos bio-psico-sociais que esta venha a implicar. De novo, acredito que nem todas as pessoas devem se deparar com questões existenciais quando abrem o guarda-roupa para decidirem o que usar antes de saírem para o mundo, mas também não vejo nada tão fascinante nisso. Até porque, abrir o guarda-roupa e me deparar com 50 tons de existencialismo pendurados em cabides causa mais angústia do que alegria por querer ser autêntico. Especialmente quando se está com pressa.
  Confesso que escolhas me agonizam. Sou um indeciso ansioso e, infelizmente, nem um pouco anônimo quanto a isso. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sei o que fazer com a minha vida. A agonia começa com esta folha branca do Word, encarando sem dó nem piedade a incapacidade dos meus dedos de traduzir através do teclado exatamente o que eu quero dizer, e se estende até todos os outros fragmentos da minha vida. Das questões universais sobre o sentido da vida e da felicidade, até aquela maldita camiseta básica cinza. Não sei se eu mencionei, mas comprei aquele pacote de camisetas básicas porque racionalizei que seriam úteis em algum momento. Mais precisamente, em algum momento em que estivesse com pressa, sem tempo para me aprofundar nas tortuosas possibilidades de existência que habitam as estampas das minhas camisetas convencionais. Só colocaria uma camiseta básica e pronto. E tem pessoas que fazem isso sem nenhuma preocupação, o que me sempre me deixou bastante impressionado. Não penso pouco delas; pelo contrário, fico admirado por optarem existir somente por si mesmos, sem nenhuma reflexão acerca da cor que decidiram usar ao se uniformizarem para vivenciar o mundo lá fora. Bravo!
  Eu, por outro lado, vesti a camiseta básica cinza e me senti fantasiado de má fé. Como se aquela camiseta básica representasse minha desistência de fazer decisões. Minha renegação frente a todas as possibilidades do mundo, as angústias, os questionamentos e as eventuais alegrias que provém delas. E como pouca ironia na minha vida é bobagem, é claro que a camiseta tinha que ser cinza: a cor do descontentamento, dos dias chuvosos em que você se sente preso em casa, e da irremediável tragédia espiritual que toma conta da gente quando algo de ruim acontece. Honestamente, era como se eu tivesse tomado minha última decisão: a de usar cinza por dentro e por fora da minha alma, como forma de uma pequena e silenciosa manifestação da minha redenção diante do mundo. Por que eu não poderia simplesmente vestir qualquer camiseta e pronto?
  Às vezes eu penso que deveria ter nascido com um manual de instruções, e que isto faz muita falta para as pessoas com quem compartilho a minha vida. Mas foi aí que eu comecei a me sentir melhor: existem pessoas que passam em casa para me buscar, nem reparam na camiseta cinza, e me levam para encontrar outras pessoas para quem eu divido minhas alegrias, confesso meus segredos, despejo minhas lágrimas e tiram meu fôlego de tanto me fazer rir. Pessoas que, por incrível que pareça, são extensões das escolhas que eu fiz na vida – por mais que estivesse de cinza. Pessoas que, sem dúvida, foram resultados das melhores escolhas que eu já fiz nessa vida, por mais que eu ainda não seja capaz de reconhecê-las. O que me fez pensar que, por mais que eu me sinta inseguro sobre o futuro, as coisas e as pessoas parecem sempre se acertar pra mim.
Aí um dia desses eu cheguei em casa, não troquei de roupa e dormi com a camiseta básica cinza, já que ela não significa nada e o universo está ao meu favor. E quando acordei, encontrei um rasgo debaixo do braço. Seria um outro sinal? Outra escolha mal feita? O que isso significa? Eu vou morrer?!

  E assim eu vou levando...

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