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A bandeira branca


   Dentre todos os meus deploráveis instintos de sobrevivência, talvez o pior deles seja o de competição interna que eu sinto que tenho com todo e qualquer outro ser humano ao meu redor. Desde a pessoa lerda que caminha despreocupadamente na minha frente na calçada, até aquele amigo com uma vida aparentemente mais incrível, rica e bem sucedida do que a minha, com quem eu mantenho uma rivalidade latente da qual ele nem desconfia. Ele nem imagina, mas a cada conquista que ele inocentemente me conta, eu mentalmente já inicio a arquitetura de mais alguma estratégia para superá-lo com algum outro feito, só para mostrar o quanto não só eu também ando muito bem, mas bem melhor que ele. Obviamente não é algo saudável, mas eu ainda acho que há algo de valor em admitir que existem partes deploráveis de mim que sinceramente existem. Sociedades à parte, talvez as pessoas fossem mais livres, felizes e despreocupadas mesmo enquanto estavam passando os dias comendo, dançando e correndo peladas por aí no meio de um matagal sem concretos e impostos. Mas, pelo bem ou pelo mal, a civilização está ai para nos acrescentar bem como nos diminui, e ou você atravessa a rua na faixa quando o sinal te permitir, ou é atropelado pelo que a maioria votou ser a regra moral vigente a ser seguida. Ou um carro; o que por ventura furar o sinal primeiro.
   Mas eu tenho competições internas secretas com algumas pessoas, o que me coloca constantemente em comparação com a felicidade alheia – e, como era de se esperar, as chances parecem nunca estar ao meu favor. Não é como se as vidas das pessoas pudessem ser medidas e avaliadas por algum placar; como se a cada vitória sua, automaticamente alguém é passado para trás. Isto é, exceto por alguns detalhes primordiais como o capitalismo e, por que não?, a procura pela felicidade. Porque por mais socialmente maduro e evoluído que alguém se considere, não há como negar que a queda ou o débito de uma pessoa que a gente não gosta nos causa uma alegria injustificavelmente grande, apesar de parecer algo grotescamente inaceitável. Adjetivos à parte, eu ainda me considero um discípulo da autenticidade – por mais bizarra e torta que ela se apresente. A gente é o que a gente é, com qualidades, defeitos, e hábitos horrendos aos quais nós só nos entregamos de madrugada, depois de um dia cheio e cansativo, quando temos certeza de que a porta está trancada e ninguém está nos vendo. E também não precisa ser algo tão apocalíptico; basta aquele julgamento interno que a gente sente ao ver a foto escrota que alguém postou no Facebook que nos faz pensar, “Fulano não tinha nenhum amigo por perto pra avisar ele pra não fazer isso?”. Se isso é o resultado de alguma seleção natural, influência do meio, ou herança bio-psico-social dos nossos ancestrais cro-magnon, eu não sei. Mas a gente é o que a gente é, com todo o bom e o ruim que nos constitui, o conforto de nos sentirmos acolhidos por amigos e família, e o prazer de julgar e superar aqueles que ocasionalmente perdem a chance de fazer parte da curva da normalidade.
   Lidando então com o fato de que somos seres questionáveis com comportamentos incoerentes, eis que nasce um problema: se estamos competindo algo com alguém, corremos o risco de chegar em segundo lugar. Se tentamos ganhar a todo custo, e ultrapassar todos que estão em nossa frente, até mesmo quando sabemos que a vida não é uma corrida, às vezes a linha de chegada pode não ser cruzada por nós. E pior do que admitir que estávamos competindo por algo que não era preciso, é aceitar que perdemos. Eu não sei admitir derrota, e talvez por isso insista em tantas frases prontas e textos batidos sobre otimismo, esperança, o amor e o amanhã. É a minha maneira de pegar impulso antes de continuar correndo. A minha manipulação da curva da normalidade, para evitar que eu seja arremessado para fora do gráfico. Eu não aprendi a desistir, não sei ceder, e não consigo abrir mão de certas causas que estavam perdidas desde o início. Metáforas, filosofias e abstrações à parte, eu estou falando sim da vida, e de trabalho, e de amor, e – por que não? – do amanhã.
   Mas para qualquer pessoa cuja vida é uma competição imaginária constante, chega a hora em que é preciso parar de correr. Até porque, ninguém consegue manter o fôlego por muito tempo. O corpo cansa, a cabeça esquenta, o coração não aguenta mais bombear sangue, e por mais que você seja contra querer parecer fraco e cansado, a linha de chegada aparece. Talvez não seja a linha de chegada com a qual você tanto sonhou, e não consigo deixar de ter essa sensação a cada aniversário que passa - eu não deveria ter chego mais adianta na vida a essa altura? Com quem estamos competindo, afinal? Com os outros, ou com quem gostaríamos de ser e não conseguimos?
   Tudo tem um limite, inclusive essa vida insensata, irracional e incoerente que eu levo. Pode não ser muito saudável, ou particularmente boa, mas é minha e é a única que eu vou ter. Sou livre para fazer dela o que eu quiser, mas não consigo deixar de querer que ela seja melhor que a sua. Tem dias que ela parece ser, outros dias nem tanto. Não é algo que me dê orgulho, mas é algo que me faz sentir autêntico por admitir. Infelizmente, não posso dizer o mesmo sobre aceitar que o fim tem um fim, que a linha de chegada nem sempre será como eu imaginei, que eu não sou nem serei capaz de tudo que eu imagino, e que às vezes a melhor maneira de encerrar uma competição sem sentido é admitindo uma verdadeira derrota. Não com o mundo nem com ninguém, mas com a pessoa que eu simplesmente não conseguirei ser, e com a vida que eu jamais terei, porque está fora do meu alcance. A gente é quem a gente é. E eu deveria perder menos tempo em querer o que não pode ser meu, para ganhar mais com o que eu tenho.
   Eu desisto. E pela primeira vez, essas palavras não soam tão ruins. Não significa que eu perdi alguma coisa, porque até onde consigo me lembrar, essas pessoas ao meu redor tinham mais o que fazer do que competir comigo por algum título infame em um pódio qualquer. Isso pode parecer sem sentido para você, mas convenhamos que não seria a primeira vez. Eu só estou aqui levantando uma bandeira branca. Porque eu não aguento mais competir pelo primeiro lugar com ninguém, e ainda assim sempre sentir que acabei em segundo.

   Admitindo uma dificuldade, aceitando uma derrota, enfrentando o fim. Um dia de cada vez, com tudo de bom e ruim que aparecer, até o amanhã. Metáforas à parte, eu já tive desabafos piores. Mas aí sou só eu caindo em velhos hábitos de competição de novo.

Comentários

  1. Vejo muito de você em mim. E neste texto não foi diferente. Me sinto tão cansado de querer ser melhor do que realmente sou, de competir internamente com meus amigos e ainda assim continuar nessa mesma realidade que desprezo..
    Enfim, sempre visito seu site e esse texto me havia passado despercebido. Parabéns pela autenticidade e por admitir algo tão pessoal.

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