Eu acho
que perdi o meu “devir”. Não,
eu não escrevi errado – tanto é que o Word nem quis me corrigir
automaticamente, diferente de quando escrevo meu sobrenome, Moresca, e ele
insiste em querer corrigir para “Marisco”,
mas tudo bem. A questão é que eu acho que perdi o meu “devir”. O que é “devir”,
você me pergunta? Bom, mesmo que não tenha perguntado eu vou explicar. E mesmo
que você já saiba o que é, vai continuar lendo mesmo assim. Porque nunca se
sabe quando eu terminarei minha aparentemente breve explicação sobre este
fenômeno da filosofia, sem que antes eu acidentalmente me perca um pouco na
minha própria filosofia distorcida de vida, e suas respectivas ramificações
dentro das entranhas da sociedade atual. Hum... Não, desta vez não. Ainda está
cedo, só tomei uma xícara de café, e não me sinto tão aloprado e inspirado
ainda. Sabe por que? Porque eu acho que perdi o meu “devir”.
“Devir” é como o caminho para a
felicidade; é uma instância filosófica que representa um processo de
transformação do ser, de um estado simples e básico para uma matéria mais
complexa e significativa. Igual, digamos assim, como um garoto de 17 anos que
se muda para outra cidade sem conhecer nada nem ninguém, e apanha
insensatamente do mundo real até que este passe a ter forma para viver nesta
terra estranha de pessoas relativamente maduras, responsáveis e, até onde eu consigo
perceber, melancólicas. Digam o que quiserem, contestem mentalmente tudo o que
eu escrevo igual eu paranoicamente sempre imagino que vocês fazem, mas nada me
tira da cabeça o paradigma de que, a medida em que nos tornamos mais adultos,
também nos tornamos irremediavelmente mais trágicos. Seja pelas vontades que
precisam ser postas em espera para que o que precisa ser feito tenha
prioridade, ou pelos sonhos que precisam ser guardados no bolso para que a
gente não tropece na realidade sem querer a caminho do trabalho, ou pelo amor
que a cada vez mais se torna mais um detalhe e menos um foco de vida. Porque dá
trabalho, é complicado e custa caro. E quanto a estes quesitos, já nos basta
ter que correr para pegar o ônibus para o trabalho, bater um cartão-ponto no
horário e economizar para conseguir parar o aluguel e passar no mercado antes
de voltar para casa. Todo dia, das 9 às 17h, exceto Domingos e feriados. Ou
não, dependendo de quantos meses de aluguel você estiver atrasado.
Quando
digo que o “devir” representa um
caminho para a felicidade, é porque quando se vivencia tal fenômeno, você já
não enxerga mais suas tarefas diárias como trabalhosas, complicadas, difíceis
ou melancólicas. Pelo contrário, você nem percebe o tempo passar enquanto está
tentando equilibrá-las no ar, porque este malabarismo que a gente costuma fazer
com a vida deixa de dar medo e passa a ser divertido de novo. Igual quando se
era criança e um dia era pouco, era curto, para brincar de todas as
brincadeiras que a gente sentia vontade. E quando digo que acho que perdi o meu
“devir”, talvez queira mesmo dizer:
acho que eu me perdi do caminho da felicidade. E antes que você pense alguma injúria
ao meu respeito, desta vez eu já admiti de cara o quanto isto é melodramático.
Eu
me recuso a acreditar que só eu já me senti assim. Como se os dias estivessem
curtos e irremediavelmente esquizofrênicos. Para mim que adoro uma rotina, esta
falta de estabilidade tem sido deveras desafiadora. Só não desisto porque, mais
do que divagar sobre melancolia, eu também adoro um desafio. Não
necessariamente significa que eu seja bom em superá-los, mas em temos como este
de frio e vento que destrói todos os guarda-chuvas que eu tento comprar, tentar
superar desafios me parece um esporte muito bom para se praticar. E porque
qualquer coisa é melhor do que fazer academia. Mas o que eu quero dizer com
tudo isto, é que eu sinto muita, mas muita falta daquela sensação tediosa de
rotina. E agora eu sei que tem gente que lê a palavra “rotina” e tem calafrios; pude senti-los daqui. Mas a rotina a qual
me refiro não é aquela declaração de morte cerebral que algumas pessoas
assinam, e em seguida passam o resto da vida em um círculo vicioso de
repertórios limitados e reações em cadeia de angústia mental que eventualmente
causam com que a pessoa entre em um supermercado, se esqueça do que tinha que
comprar, e acabe atirando em todo mundo.
Eu
me refiro àquela rotina mais sossegada, resultado de uma vida mais estável,
igual a que eu costumava ter há alguns meses, antes de ter dito “desafio
aceito!” muito alto e de ter comprado uma baita briga com a vida, que por sua
vez transformou o meu caminho para a felicidade em uma pista olímpica de
obstáculos. E é isto que esses textos tem sido; sou eu, sinalizando mais uma
vez, que “Ei, eu caí! De novo! Mas já vou
levantar... Só mais cinco minutos...”. Só que isto me fez refletir sobre o
verdadeiro significado do “devir”, e se ele deve ser mais uma conquista do que
um direito. Só se sente a felicidade depois de cair, levantar e descobrir que é
possível continuar seguindo em frente mesmo com o joelho ralado e um corte na
testa – a princípio. Efeitos que só podem ser produzidos por aquela pista de
obstáculos, patrocinados pela melancolia, que sempre tende a acompanhar os
níveis de maturidade que a gente atinge ao longo da vida. Então, se eu estou me
sentindo todo quebrado e machucado, mas ao mesmo tempo percebo o porque disto,
e nem por isso desisto de continuar tentando ou de passar no mercado depois do
trabalho para comprar mais leite antes de voltar para casa, isto significa que
eu estive no caminho certo esse tempo todo?
Há
quem diga também que o “devir”, ao
mesmo tempo em que representa um caminho, também contempla aquela sensação de
cruzar a linha de chegada, olhar para trás e dizer distraidamente, “o percurso já acabou?”. É a sensação de
vitória, de conquista, depois de superar tantos desafios, e desviar de tantos
obstáculos, e apesar de estar todo ralado e machucado, ainda ser capaz de
passar no mercado depois do trabalho e voltar para casa com o leite, e o
sentimento de dever cumprido. Então, no fim, o “devir” acaba sendo mais uma consequência do modo como você percorre
os caminhos que a vida te dá. Às vezes é divertido trilhá-los, às vezes nem
tanto. Mas no fim do dia, toda vez que você estiver de volta em sua cama,
enrolado em cinco cobertas e pelo silêncio do seu quarto, e imaginar “Que dia...”, esta é a prova de que você
está mesmo no caminho certo, Igor. Todo mundo tem o direito de ir e “devir”, mas nem todo mundo se compromete
a tomar uma direção. Bem ou mal, eu ando me mexendo.
Sentir-se sem rumo às vezes faz parte, eu
acho.
Amazing!
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