Em 1994,
Gaspar LeMarc, um
explorador francês, estava no meio de uma jornada através das cordilheiras dos
Alpes quando uma nevasca o separou de sua equipe e subitamente causou um
acidente que o fez cair dentro de uma crevasse – uma abertura natural entre geleiras,
cuja profundidade aproximadamente estendia-se até 90 metros acima do chão. Quando
recuperou a consciência, Gaspar descobriu que sua perna estava severamente
ferida, e percebeu-se impossibilitado de escalar de volta à superfície. Ao
lutar contra todos os instintos naturais que possuía, e ao obrigar-se a aceitar
a pior alternativa possível no momento, Gaspar decidiu que não havia outro meio
a não ser se aprofundar cada vez mais dentro da crevasse e da escuridão que a
dominava. Depois de quase dois dias, Gaspar conseguiu encontrar uma saída do
outro lado, e ao retornar para a base, Gaspar reencontrou sua equipe auxiliar
que estava prestes a abortar todas as tentativas de resgate que já haviam
procedido, conforme o código de honra e ética dos escaladores. Diante deles,
Gaspar anunciou que, apesar de estarem a ponto de desistir e deixá-lo para trás
nas cordilheiras e em suas memórias, eles estariam fazendo a coisa certa.
Porque diante de uma nevasca, conforme o código, é cada um por si, e um homem
que por acaso fica para trás, deve ser deixado para trás, para que a segurança
do grupo seja mantida.
Antes que você tente pesquisar a veracidade
desta história, permita-me poupar o seu tempo: é mentira. É uma história
fictícia que eu descobri dentre uma das minhas diversas maratonas de seriados
em que eu me perco para compensar pela ausência de uma vida pessoal, amorosa,
ou qualquer outra que não inclua uma escala impiedosa de trabalho que insiste
em não me dar sossego não só em horário comercial, mas em qualquer outro
horário socialmente aceitável que me permita ser readmitido à sociedade como um
ser ativo, solteiro e contribuinte de impostos que prezam pela vigência de
convenções políticas como a Copa do Mundo, a Polícia de Economia Nacional, e o
Dia dos Namorados. O que também explica por que eu ando tão ausente da vida
noturna Cascavelense, e tão online nas redes sociais depois das duas da manhã.
Mas o meu
objetivo com esta história é similar ao que ela alude: a como lidar diante de
problemas ou situações aparentemente impossíveis, a ponto de nenhuma equipe de apoio
se dar ao luxo de voltar para tentar uma missão de resgate. Porque, assim como
eu imagino que seja dentro da comunidade de escaladores, na zoeira da vida
também é cada um por si. E alguém que por acaso tropeçar e cair, será
impiedosamente deixado para trás. Apesar de todos os aspectos bio-psico-sociais
envolvidos, das normas morais que nos são passadas de geração para geração, e
de qualquer bom senso instintivo que seja desperto em cada um de nós, não há
argumentos contra o fato de que, quando outros caem, estamos mais interessados
em continuar seguindo em frente. Especialmente para encontrar outras pessoas
com quem a gente possa comentar sobre com a vida do Fulano anda mal, e como ele
provavelmente vai morrer congelado naquela montanha de problemas dele. É a
natureza humana no seu pior, porém, no seu normal.
Acho que todo mundo em algum momento da vida
já chegou em casa cansado depois de um dia aparentemente interminável e
abominável, e pensou “Eu preciso fazer
alguma coisa com isso...” E pensou que mudar seria a solução, e que daquela
noite em diante, depois de abrir uma garrafa de vinho (ou qualquer outra bebida
que simbolizasse o autotriunfo do seu insight), brindou consigo mesmo e jurou
silenciosamente que “Amanhã será um novo
dia, para um novo eu!”. E aí acordou, saiu de casa, tropeçou na velha
rotina de sempre, e caiu na crevasse dos seus problemas mais uma vez. E até aí
tudo bem. Estamos vivos, logo, fadados ao acaso, ao imprevisível e,
invariavelmente, à sentença terminal dos nossos próprios comportamentos padrões.
Porque instituir uma mudança da noite pro dia é difícil – talvez até
improvável, dependendo do grau do seu desespero silencioso. Por mais que você
se sinta cheio de problemas, eles não irão desaparecer na manhã seguinte só
porque você subitamente decidiu que eles não possuem mais importância que
tinham quando você passou no mercado para comprar mais vinho antes de chegar em
casa em uma noite solitária de inverno.
Foi então que, ao voltar para casa em uma
noite dessas, eu me lembrei daquela história fictícia e do quanto – pelo menos,
dentro da lógica do episódio daquela série – aquilo sinceramente fazia sentido.
Se quanto mais você insistir em confrontar os seus problemas sem nenhuma
estratégia para resolvê-los, mais eles ganham força e acabam com a sua
paciência, porque não fazer o contrário? Claro que não é fácil; admitir
derrota, cansaço ou incapacidade vai contra tudo o que eu visceralmente
acredito. Mas talvez seja o que esteja me impedindo de encontrar uma saída mais
viável. Talvez, no final das contas, seja a chave da minha sobrevivência. Às
vezes, na vida, para seguir em frente é preciso voltar atrás. Às vezes para
subir aos céus, é preciso descer até os confins do inferno, nem que seja para
pegar impulso. E assim como o imaginário Gaspar, às vezes quando alcançar a
superfície parece impossível, talvez o melhor jeito de rever a luz seja ao
entregar-se para a escuridão da crevasse. E é exatamente isso que eu vou fazer.
Que se danem as contas, os amigos que não
vejo há meses, a cidade em que parece cada vez mais longe de que eu retorne, o
amor que talvez nunca chegue, e a sanidade cuja qual eu gosto de pensar que
ainda tenho algum controle. Eu vou me arrastar até o limite, indo contra tudo o
que eu sempre acreditei que fosse o ideal, o certo, o justo para mim, e vou
parar de lutar contra a escuridão da crevasse, da qual o mundo real está
incomensuravelmente cheio. E vou encontrar a felicidade do outro lado, ou vou
morrer tentando. Metaforicamente, é claro. Porque eu tenho uma faculdade para
terminar, uma conta da Renner para
quitar, um amor que dure o resto da vida para encontrar, e um punhado de
seriados para rever em Setembro.
Antes de traçar qualquer estratégia, é
sempre bom rever as prioridades.
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