Câncer. É uma palavra pequena com um grande
impacto. É também uma palavra que envolve uma série de hemoglobinas
fragilizadas, tratamentos intensivos e sensibilidade alheia. Eu não vou mentir
e fingir que sei como deve ser ter algo dentro de mim capaz de anular as minhas
células uma a uma, até que toda a minha personalidade irracional e
desconcertante seja dizimada por uma força invisível insuperável. Com ênfase em
outra palavra – invisível – porque
esta talvez seja a que mais chegue perto de traduzir bem o que é o câncer em
si, bem como o que ele causa na pessoa que o carrega. Mas eu não quero falar
muito sobre a teoria, ou as ramificações filosóficas que envolvem estar
submetido a algo tão desafiador e indescritível quanto um tumor. Não. Eu quero
falar sobre a minha tia.
É uma tia como você também deve ter na sua
família. Aquela que anima a família quando aparece para o almoço de domingo,
depois de comentar de maneira nem tão sutil sobre marcar o próximo almoço na
casa dela na semana que vem, e que fica encarregada de trazer a sobremesa – ou,
em outras ocasiões, a cachaça. É uma tia que fez grande parte da minha
história, desde os anos que passei brincando no quintal da sua casa com seus
animais de estimação – cachorros, gatos, periquitos, ou o que mais lhe desse
vontade de criar – até as vezes em que posei lá porque acabei caindo no sono
depois de assistir filmes demais e me afundar em um balde de pipoca com
katchup. Porque eu era uma criança estranha, incorrigível e preguiçosa, mas que
era sempre acolhido com muito carinho quando a visitava. Isto é, nas poucas
vezes que a visitava. Também era uma tia que sempre fazia questão de me
lembrar, com razão, que eu precisava visitá-la mais. Que sempre dava conselhos
sobre fazer menos manha para almoçar apesar de não ter a minha comida favorita
na mesa, que eu deveria brigar menos com o meu pai, e que, não importa o que
acontecesse, ser parte de uma família significa que você nunca estará sozinho.
É uma tia que mora em Londrina, e que está
mais perto do resto da minha família do que eu, que tive a questionável ideia
de ir estudar em outra cidade para... Sentir saudades, na falta de uma
descrição melhor. E quando eu me lembro da minha tia, e da nossa família
reunida, dos questionamentos do tipo “quando
você vai vir na minha casa?” e “está
namorando alguém, meu sobrinho?”, coisas do tipo plaquetas, quimioterapia,
cabelo, radiação e afins nunca me vem à mente. Mas quando eu converso com ela –
que, por sinal, está enfrentando um impiedoso segundo round contra uma doença
incurável – eu percebo a sua surpresa por estar sendo vista como uma pessoa de
verdade. Logo ela, cuja presença sempre foi tão marcante e chamativa, agora
parecia invisível a olho nu, ao contrário do tumor que, segundo ela, parecia
que era só o que algumas pessoas conseguiam enxergar nela.
Dentre brincadeiras e cobranças de que sim,
eu preciso te visitar mais, ela comentou comigo alguns sentimentos que, segundo
ela, não podiam ser tão compartilhados com as pessoas que estão mais próximas
dela do que eu. E me contou sobre receber abraços fúnebres, de ser censurada ao
tentar comentar sobre sua condição, e de que já teve a impressão de que estava
morta, apesar de ainda estar respirando. E o quanto é difícil lutar contra uma
ameaça invisível, enquanto outras pessoas só a percebem como um motivo para
usar preto e sentir constrangimento por não saber lidar com o assunto. E quanto
mais ela me contava sobre como é complicado, cansativo e crítico o seu estado
atual de espírito, tudo o que eu conseguia imaginar era ela como eu a sempre
vi: animada, falando alto, brindando comigo com a nossa família ao redor em um
domingo de sol e cerveja. Hemoglobinas à parte, eu não consigo enxergar a minha
tia de outra maneira.
Ela está doente sim. Tem dias bons e ruins,
e vez por outra precisa mais de ajuda do que consegue pedi-la. Mas quando
alguém fala dela perto de mim, ou comenta algo sobre o seu câncer, eu só
consigo absorver isso como um detalhe; um detalhe perigoso que injustamente se
prendeu à sua personalidade amigável e carinhosa, mas que em momento algum deve
ser interpretado como a sua definição. As idas e vindas da quimioterapia não
substituem os almoços de domingo e viagens pelo Brasil que ela já fez, tampouco
sua imunidade biológica atual faz jus à sua resiliência natural, produto de
anos de risadas, experiência e sorrisos que já vivenciou até hoje. Quando ouço
falar da minha tia, eu penso em amor, família e hospitalidade, e não naquela
palavra com C que alguns temem mencionar perto dela.
Minha tia tem câncer, e infelizmente não há
nada que eu possa fazer para combater o tumor que está lhe tomando as energias
que deveriam ser gastas como sempre foram: sorrindo, viajando, dançando e “bebemorando”. O que eu posso fazer, para
falar a verdade, não foge muito do que eu sempre fiz: aproveitar a sua
companhia, compartilhar suas experiências, e sentir sua saudade. Exceto por um
detalhe, que me parece mais significante do que este que invadiu a sua
biologia: eu preciso visitá-la mais.
Margara
Moresca é filha, mãe, avó, tia, professora, educadora, brasileira,
dançarina e viajante. Câncer é um adendo, e não uma identidade.
Legal.
ResponderExcluirQue texto emocionante.
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