Pular para o conteúdo principal

O ciclo do café com leite


   Era uma manhã qualquer, de um dia típico, em uma semana ordinária. Nada demais, para falar a verdade. Confesso que talvez esteja me tornando apegado demais à rotinas; o que é no mínimo iônico, visto que há alguns anos, logo quando cheguei aqui, tudo o que eu queria era ter um pouco mais de noção sobre a cidade em que eu estava morando, e como o meu dia iria ser. Tudo era muito novo, muito rápido, muito espontâneo, enquanto eu não sabia de nada do que iria acontecer em seguida. Não que hoje eu saiba, mas o mistério que cercava os meus dias há cinco anos definitivamente parece já ter entregue o seu final ultimamente. E não foi tão surpreendente quanto eu esperava que fosse. Mas eu estou me perdendo do que quero dizer. O que eu quero dizer é que, em uma dessas manhas de mais um dia insuportavelmente previsível, parecia que só o que poderia me surpreender seria o fim dos tempos. Mas não. Em vês disso, acabou o pó de café.
   Quer dizer, não acabou, mas não seria o suficiente para me despertar da ressaca da contemporaneidade que eu estava sofrendo. Não. A cafeteira iria passar pouco café, e eu iria passar muita vontade. Quis a vida, que eu não canso de dizer que é uma eterna brincalhona com esses nossos dramas existenciais, que apesar de não haver outro pacote de pó de café em casa, houvesse leite. E se eu fosse um fã de café com leite, este teria sido o fim da história. Claro que não foi, e caso você ainda insista em continuar lendo, e se conhece um pouco da minha paranoia literária, acho que já sabe aonde eu quero chegar com isso.
   Eu não gosto de café com leite. Acho fraco, quase insosso, e uma fraude quando comparado com café de verdade. Daqueles bem fortes e amargos, perfeitos para dias cinzentos de melancolia e ressaca da contemporaneidade. Acho que a essa altura, vale ressaltar que eu ando muito bem, obrigado. Mas eu devo confessar que sim, estou sofrendo daqueles períodos de seca paradidática, onde qualquer migalha de inspiração já serve para me colocar diante do terror de uma folha branca do Word, nem que seja para tornar o meu ócio um pouco mais útil, e para matar tempo enquanto termino de fazer o download de mais uma temporada de alguma série. E não me olhe deste jeito; cada um tem o seu jeito de sobreviver ao “endomingamento” da alma, especialmente com a frente fria que escureceu o céu lá fora.
   Enfim, café com leite me lembra fraqueza. E sim, antes que você me diga algo, eu gostaria muito de ser capaz de simplesmente calar a boca e aproveitar um café com leite como uma pessoa normal. Mas este não é o caso; até porque, se fosse, o que eu faria com todo esse potencial literário? Imaginação é uma coisa terrível de se desperdiçar. Ao contrário do café com leite, que desde a infância já é considerado como algo inaceitável. Porque nenhum de nós queria ser a criança “café com leite” da brincadeira. Aquele que não é capaz de lidar com a brincadeira igual a todos os outros, e precisa ter um pouco de vantagem e piedade sobre os outros para conseguir brincar também. Ou então era deixado de fora, porque ninguém queria dar vantagem para ninguém.
   E aí a gente cresce, amadurece, faz amigos novos, estuda, trabalha, namora e se der sorte é até feliz, mas nada realmente apaga aquele passado café com leite que te levou até aqui. Não vou negar que já fui a criança café com leite, apesar de não me lembrar ao certo da frequência que isso aconteceu. O que me lembro claramente era odiar ser a criança café com leite, e de até abandonar algumas brincadeiras por conta própria, por não querer que outras crianças me dessem algum tipo de vantagem para brincar junto com elas. Às vezes porque os outros eram mais velhos, ou porque era alguma brincadeira perigosa, ou porque minha mãe brigava comigo na frente dos outros, dizendo que eu não podia brincar – “porque não e ponto final”. Ser a criança café com leite significava ser a criança fraca, que poderia crescer e se tornar um adulto fraco. Que precisa que os outros peguem leve com ele para que ele consiga acompanhar a competitividade dos jogos dos adultos. A competitividade do mundo real. Mas até aonde eu sei – o que eu confesso não ser muito – o mundo real não se preocupa em dar vantagem ou não pra ninguém. Aliás, ao meu ver, o mundo real é tão aleatório quanto as amizades que fazemos quando somos crianças.
   O que me levou àquela manhã cinzenta e mal humorada, com pouco pó de café e muita vontade de acordar. Talvez fosse o resultado de uma noite passada ruim, ou de um mundo de adultos que nos obriga a estar sempre alerta, sempre pronto, e sempre com um estoque considerável de pó de café em casa. Na falta de alternativa melhor, e de vontade de trocar de roupa para ir tomar café na padaria da esquina, às favas com os padrões da sociedade e com o meu mau humor. E joguei o pouco pó de café que restava na cafeteira, peguei o leite milagroso que restava na geladeira, e preparei a minha caneca. Quando o café ficou pronto, hesitei um pouco antes de dar o primeiro gole, provavelmente impedido pelas minhas lembranças asquerosas de infância, e meus sentimentos amargos de jovem adulto insosso. Mas quando dei o primeiro gole, o café com leite não tinha o gosto ruim do qual eu me lembrava. Era um pouco pior, porque apesar de estar muito bom, tinha gosto de ironia.
   Depois de anos comprometido com a noção de que café com leite é ruim, que ser fraco é inaceitável, e que competições existem para serem sempre ganhas, eu me peguei questionando tudo isso a medida em que era despertado por aquele café da manhã. Por que é tão difícil aceitar ajuda? Por que é preciso competir sempre, até mesmo quando não há competição? Por que recusar o café com leite, apesar de ser menos amargo que o café tradicional que os adultos tomam para se manterem alertas? Parte de mim até gosta de ter esses momentos de claridade, porque ao menos servem para me lembrar de que eu preciso ser menos exigente comigo e com o mundo ao meu redor, independente do que já aconteceu comigo, do que eu posso fazer daqui em diante, ou da cor do gramado do vizinho. Ou então, o café com leite poderia ser só um café com leite, que serviu para me trazer de volta à realidade tão bem quanto qualquer outro café faria.

   Paranoias à parte, o café com leite também serviu para me lembrar de que eu preciso ir ao mercado.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os 5 estágios do Roacutan

            Olá. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sou um alcoólatra. Muito pelo contrário, sou um apreciador, um namorador, um profissional em se tratando de bebidas. Sem preconceito, horário ou frescura com absolutamente nenhuma delas, acredito que existe sim o paraíso, e acredito que o harém particular que está reservado para mim certamente tem open bar. Já tive bebidas de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, assim como todas as ressacas que eram possíveis de se tirar delas. Mas todo esse amor, essa dedicação e essas dores de cabeça há muito deixaram de fazer parte do meu dia a dia, tudo por uma causa maior. Até mesmo maior do que churrascos de aniversário, camarotes com bebida liberada e brindes à meia noite depois de um dia difícil. Maior do que o meu gosto pelos drinques, coquetéis e chopes, eu optei por mergulhar de cabeça numa tentativa de aprimorar a mim mesmo, em vês de continuar me afogando na mesmisse da minha mela...

A girafa e o chacal

Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal . Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal.  De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos.  Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ...

Wile E.: o gênio, o mito, o coiote

Aí todo mundo no Facebook mudou o avatar para a imagem de algum desenho e eu não consegui achar mais ninguém, mas depois de um tempo eu resolvi brincar também. O clima de celebração do dia das crianças invadiu as redes sociais de tal maneira que todos nós acabamos tendo vários flashbacks com os desenhos de nossos colegas, dos programas que costumávamos assistir anos atrás quando éramos crianças e decorar o nome dos 150 pokemons era nosso único dever. E para ficar mais interativo, cada um mudou a imagem para um desenho com qual mais se identifica, e quando a minha vez chegou, não tive dúvidas para escolher nenhum outro senão meu ídolo de ontem, de hoje, e de sempre: o senhor Wile E. Coiote. Criado em 1948 como mais um integrante da família Looney Tunes, Wile foi imortalizado pelo apelido e pela fama de fracassado em sua meta de vida: pegar o Papa Léguas. Através de seu suposto intelecto superior e um acesso ilimitado ao arsenal de arapucas fornecidas pela companhia ACME, Wile tento...