Antes de investigar o motor, meu pai abriu o porta-malas para
conferir se estava com suas ferramentas. Deixou sua porta aberta depois que a
vela disparou pela segunda vez. Até nos conformarmos de que poderíamos ficar
ali por algum tempo, meu pai deixou todo o carro aberto. O rádio ainda estava
ligado, tocando as músicas do pen drive que eu trouxe para a viagem. Ouvir
música era só o que podíamos fazer enquanto esperávamos pela ajuda. Voltei para
o meu lugar no carro, pensando se talvez teria sido melhor ficar em casa, ou se
era eu quem tinha o dom de atrair problemas e situações adversas. E continuei
aumentando o tamanho do problema na minha cabeça, enquanto meu pai caminhava
aleatoriamente pelo acostamento até que um carro passou por nós lentamente e
deu ré até se alinhar ao andar do meu pai.
- Ei, você que é o Souza?
- Souza?
- É, Souza. O dono desse sítio que fica
nessa descida de terra aqui, do lado daquela árvore ali. Eu te liguei mais cedo
sobre um motor de trator.
- Não, não sou eu... Meu nome é Marcio.
Eu só estou aqui porque o meu carro deu um problema no motor. Eu e meu filho
ali estamos esperando a ajuda chegar.
- Um problema no motor, é? Que coisa. Mês
passado mesmo tive que mandar arrumar meu cabeçote. Gastei uma nota só, chê!
Aliás, pode me chamar de Gaúcho. Então, como eu dizia, meu cabeçote deu pau e
tive que ligar para um conhecido meu que é mecânico. Resolveu na hora, uma
beleza de serviço. Só teve que cobrar um pouco a mais porque teve que trocar a
peça. Se fosse só pela mão de obra, o cara dava uma maneirada. Aliás, espera aí
que eu vou dar um toque pra ele. Quem sabe ele não resolve o problema de vocês?
- Olha, se o senhor puder me ajudar...
- Gaúcho, chê!
- Senhor Gaúcho.... Se o senhor puder nos
ajudar, eu agradeço muito. Não estamos nem na metade do caminho da nossa viagem
ainda.
- Guenta aí!
Eu fiquei observando a conversa entre o “senhor Gaúcho” e meu pai de longe.
Estava ocupado demais tentando fugir dos mosquitos borrachudos que subitamente
começaram a agir em conjunto em uma missão de me devorar por inteiro, uma
picada aleatória de cada vez. Até preferi deixar só o meu pai falar, porque
segundo relatos dos meus amigos, minhas caretas não me deixam mentir sobre o
que eu acho das pessoas e das coisas ao meu redor. Sem sombra de dúvidas,
conversar com o “senhor Gaúcho” em um
acostamento improvisado durante uma tarde exageradamente ensolarada de
sexta-feira, e ouvi-lo falar sobre o “pau
no cabeçote” que ele sofreu tempos atrás, iria gerar uma careta que talvez
o fizesse desistir de ligar para o tal mecânico. Ao desligar o telefone, depois
de gritar seu sotaque com ele no telefone, ele continuou a falar com o meu pai:
- Acabei de falar com o Augusto – pelo visto o nome do mecânico era
Augusto, e o “senhor Gaúcho” não era muito fã de contextos – e ele vai vir aqui dar uma olhada no
problema de vocês. Agora você me dá licença, seu Marcio, que eu preciso achar
esse tal de Souza pra ver se consigo vender um desses motores ainda hoje!
- Claro, claro, tudo bem, Gaúcho! Muito
obrigado pela sua ajuda!
Meu pai, antes de dominar a arte do
empreendimento, é um cavalheiro nato. Em uma pequena troca de falas gritadas
com o “senhor Gaúcho”, ele já o
considerava muito por ter parado e, mesmo depois de descobrir que não estava
falando com o tal Souza, ainda se dispôs a terceirizar outro pedido de ajuda
para nós. Quando o Gaúcho voltou para a estrada à procura de outro homem
andando aleatoriamente no acostamento que se chamasse Souza, meu pai voltou
para perto do carro, onde eu estava:
- Quem diria, não é?
- É, quem diria...
- Onde está seu desgosto por precisar das
pessoas agora?
- O que?
- Ué. Você disse que odeia precisar das
pessoas. Não levou em conta situações como essa, né?
- Uma lição de vida? Aqui? Agora? Sério?
- Você se preocupa demais com a vida,
filho. Tem só 22 anos. Pra que esquentar a cabeça tanto assim? Deveria sair, se
divertir, namorar, curtir... Com moderação, claro.
- Isso aqui é uma exceção. Estar parado
debaixo do que parece ser a única árvore dessa parte da estrada esperando por
dois mecânicos diferentes não tem nada a ver com o que eu estava falando sobre
relacionamentos.
- Por que não? Não é você que vive
falando sobre relacionamentos, comportamentos, e todas aquelas coisas de
psicologia lá? É disso que a gente está dependendo aqui, agora.
Eu estava prestes a recuperar o fôlego que
perdi enquanto ainda tentava me defender dos borrachudos para rebater o sermão
do meu pai, quando o mecânico do 0800 do pedágio apareceu. Estacionou o carro
do lado do nosso no acostamento improvisado, mas demorou uns cinco minutos para
descer do carro. Pelo que parecia, estava preenchendo uma série de relatórios
sobre a nossa ocorrência. “Até ele
preencher toda a papelada que precisa, a gente já foi embora”, resmungou o
meu pai. Entre o empreendedorismo e o cavalheirismo, meu pai ainda era um pai.
Finalmente, o mecânico desceu do carro, com um sotaque ainda mais carregado do
que o do “senhor Gaúcho”, só que
puxando para o nordestino.
- Tarde, pessoal. Deu buxa no motor?
- Pois é – respondi, antes que meu pai pudesse
colocar seu cavalheirismo em ação. Tudo para ganhar tempo para rebater aquele
argumento.
Antes de sequer olhar o capô aberto do
carro, o mecânico que ainda não tinha nome nos pediu uma série de informações
sobre o veículo, sobre nosso endereço, telefones, e aproveitou para puxar
conversa fiada sobre a nossa viagem. Ao revisar a tal queixa sobre a vela do
motor que lhe foi passada, logo disse:
- É, ela soltou mesmo. Não vai ter como
seguir viagem. Não adianta nem usar a chave pra apertar. Vai ter que mexer no
cabeçote, mas não estamos autorizados a mexer no carro. Normas do serviço, para
evitar danos ou processos, entendem? Vou chamar o guincho pra vocês, ok? Deixa
só eu conferir no GPS aonde vocês estão e... Achei! Quilômetro 157. Beleza,
então. Ligo do caminho, pra ir acelerando o processo. Só não sei quanto tempo
vai demorar. Mas aguentem aí, ok? Obrigado!
Em algum momento do monólogo definitivo do
mecânico, meu pai perguntou seu nome. Eu não me lembro do nome, porque estava
ocupado demais sobre como cabeçotes de carro parecem ser mais problemáticos do
que eu. Quando ele voltou para a estrada, meu pai voltou ao nosso assunto:
- Não botei muita fé nesse daí não.
- Mas ele é o mecânico da empresa do
pedágio.
- O mecânico que nem pode mexer no carro
serve pra que?
- Ok, ok. Mas quem você acha que vem
primeiro? Já que nossa ocorrência já atraiu a visita de dois mecânicos e um
guincho?
- Acho que o Augusto vem primeiro.
- “O Augusto”? Você nem conhece ele. E se
não vier?
- Botei fé no Gaúcho.
- Este é você tendo fé na humanidade,
para me mostrar como as pessoas precisam de pessoas e tudo mais?
- Exatamente. Onde foi que paramos?
Meu pai deu um sorrisinho irônico que, mais
ironicamente, eu estava acostumado a ver só no meu reflexo. Ao fundo, o pen
drive no carro estava tocando “Dancin’
Days”. Meu pai começou a dar alguns passinhos de dança, que só serviram
para me provocar ainda mais. Estava sendo um dia daqueles, e por mais que
custasse a admitir, queria muito que o Augusto chegasse primeiro. Também tinha
botado fé no Gaúcho.
Continua...
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