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A resiliência do quilômetro 157 (parte 2)


   Antes de investigar o motor, meu pai abriu o porta-malas para conferir se estava com suas ferramentas. Deixou sua porta aberta depois que a vela disparou pela segunda vez. Até nos conformarmos de que poderíamos ficar ali por algum tempo, meu pai deixou todo o carro aberto. O rádio ainda estava ligado, tocando as músicas do pen drive que eu trouxe para a viagem. Ouvir música era só o que podíamos fazer enquanto esperávamos pela ajuda. Voltei para o meu lugar no carro, pensando se talvez teria sido melhor ficar em casa, ou se era eu quem tinha o dom de atrair problemas e situações adversas. E continuei aumentando o tamanho do problema na minha cabeça, enquanto meu pai caminhava aleatoriamente pelo acostamento até que um carro passou por nós lentamente e deu ré até se alinhar ao andar do meu pai.

- Ei, você que é o Souza?
- Souza?
- É, Souza. O dono desse sítio que fica nessa descida de terra aqui, do lado daquela árvore ali. Eu te liguei mais cedo sobre um motor de trator.
- Não, não sou eu... Meu nome é Marcio. Eu só estou aqui porque o meu carro deu um problema no motor. Eu e meu filho ali estamos esperando a ajuda chegar.
- Um problema no motor, é? Que coisa. Mês passado mesmo tive que mandar arrumar meu cabeçote. Gastei uma nota só, chê! Aliás, pode me chamar de Gaúcho. Então, como eu dizia, meu cabeçote deu pau e tive que ligar para um conhecido meu que é mecânico. Resolveu na hora, uma beleza de serviço. Só teve que cobrar um pouco a mais porque teve que trocar a peça. Se fosse só pela mão de obra, o cara dava uma maneirada. Aliás, espera aí que eu vou dar um toque pra ele. Quem sabe ele não resolve o problema de vocês?
- Olha, se o senhor puder me ajudar...
- Gaúcho, chê!
- Senhor Gaúcho.... Se o senhor puder nos ajudar, eu agradeço muito. Não estamos nem na metade do caminho da nossa viagem ainda.
- Guenta aí!

   Eu fiquei observando a conversa entre o “senhor Gaúcho” e meu pai de longe. Estava ocupado demais tentando fugir dos mosquitos borrachudos que subitamente começaram a agir em conjunto em uma missão de me devorar por inteiro, uma picada aleatória de cada vez. Até preferi deixar só o meu pai falar, porque segundo relatos dos meus amigos, minhas caretas não me deixam mentir sobre o que eu acho das pessoas e das coisas ao meu redor. Sem sombra de dúvidas, conversar com o “senhor Gaúcho” em um acostamento improvisado durante uma tarde exageradamente ensolarada de sexta-feira, e ouvi-lo falar sobre o “pau no cabeçote” que ele sofreu tempos atrás, iria gerar uma careta que talvez o fizesse desistir de ligar para o tal mecânico. Ao desligar o telefone, depois de gritar seu sotaque com ele no telefone, ele continuou a falar com o meu pai:

- Acabei de falar com o Augusto – pelo visto o nome do mecânico era Augusto, e o “senhor Gaúcho” não era muito fã de contextos – e ele vai vir aqui dar uma olhada no problema de vocês. Agora você me dá licença, seu Marcio, que eu preciso achar esse tal de Souza pra ver se consigo vender um desses motores ainda hoje!
- Claro, claro, tudo bem, Gaúcho! Muito obrigado pela sua ajuda!

   Meu pai, antes de dominar a arte do empreendimento, é um cavalheiro nato. Em uma pequena troca de falas gritadas com o “senhor Gaúcho”, ele já o considerava muito por ter parado e, mesmo depois de descobrir que não estava falando com o tal Souza, ainda se dispôs a terceirizar outro pedido de ajuda para nós. Quando o Gaúcho voltou para a estrada à procura de outro homem andando aleatoriamente no acostamento que se chamasse Souza, meu pai voltou para perto do carro, onde eu estava:

- Quem diria, não é?
- É, quem diria...
- Onde está seu desgosto por precisar das pessoas agora?
- O que?
- Ué. Você disse que odeia precisar das pessoas. Não levou em conta situações como essa, né?
- Uma lição de vida? Aqui? Agora? Sério?
- Você se preocupa demais com a vida, filho. Tem só 22 anos. Pra que esquentar a cabeça tanto assim? Deveria sair, se divertir, namorar, curtir... Com moderação, claro.
- Isso aqui é uma exceção. Estar parado debaixo do que parece ser a única árvore dessa parte da estrada esperando por dois mecânicos diferentes não tem nada a ver com o que eu estava falando sobre relacionamentos.
- Por que não? Não é você que vive falando sobre relacionamentos, comportamentos, e todas aquelas coisas de psicologia lá? É disso que a gente está dependendo aqui, agora.

   Eu estava prestes a recuperar o fôlego que perdi enquanto ainda tentava me defender dos borrachudos para rebater o sermão do meu pai, quando o mecânico do 0800 do pedágio apareceu. Estacionou o carro do lado do nosso no acostamento improvisado, mas demorou uns cinco minutos para descer do carro. Pelo que parecia, estava preenchendo uma série de relatórios sobre a nossa ocorrência. “Até ele preencher toda a papelada que precisa, a gente já foi embora”, resmungou o meu pai. Entre o empreendedorismo e o cavalheirismo, meu pai ainda era um pai. Finalmente, o mecânico desceu do carro, com um sotaque ainda mais carregado do que o do “senhor Gaúcho”, só que puxando para o nordestino.

- Tarde, pessoal. Deu buxa no motor?
- Pois é – respondi, antes que meu pai pudesse colocar seu cavalheirismo em ação. Tudo para ganhar tempo para rebater aquele argumento.

   Antes de sequer olhar o capô aberto do carro, o mecânico que ainda não tinha nome nos pediu uma série de informações sobre o veículo, sobre nosso endereço, telefones, e aproveitou para puxar conversa fiada sobre a nossa viagem. Ao revisar a tal queixa sobre a vela do motor que lhe foi passada, logo disse:

- É, ela soltou mesmo. Não vai ter como seguir viagem. Não adianta nem usar a chave pra apertar. Vai ter que mexer no cabeçote, mas não estamos autorizados a mexer no carro. Normas do serviço, para evitar danos ou processos, entendem? Vou chamar o guincho pra vocês, ok? Deixa só eu conferir no GPS aonde vocês estão e... Achei! Quilômetro 157. Beleza, então. Ligo do caminho, pra ir acelerando o processo. Só não sei quanto tempo vai demorar. Mas aguentem aí, ok? Obrigado!

   Em algum momento do monólogo definitivo do mecânico, meu pai perguntou seu nome. Eu não me lembro do nome, porque estava ocupado demais sobre como cabeçotes de carro parecem ser mais problemáticos do que eu. Quando ele voltou para a estrada, meu pai voltou ao nosso assunto:

- Não botei muita fé nesse daí não.
- Mas ele é o mecânico da empresa do pedágio.
- O mecânico que nem pode mexer no carro serve pra que?
- Ok, ok. Mas quem você acha que vem primeiro? Já que nossa ocorrência já atraiu a visita de dois mecânicos e um guincho?
- Acho que o Augusto vem primeiro.
- “O Augusto”? Você nem conhece ele. E se não vier?
- Botei fé no Gaúcho.
- Este é você tendo fé na humanidade, para me mostrar como as pessoas precisam de pessoas e tudo mais?
- Exatamente. Onde foi que paramos?

   Meu pai deu um sorrisinho irônico que, mais ironicamente, eu estava acostumado a ver só no meu reflexo. Ao fundo, o pen drive no carro estava tocando “Dancin’ Days”. Meu pai começou a dar alguns passinhos de dança, que só serviram para me provocar ainda mais. Estava sendo um dia daqueles, e por mais que custasse a admitir, queria muito que o Augusto chegasse primeiro. Também tinha botado fé no Gaúcho.


Continua...

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