ELA: Um dia
eu vou morar aqui...
EU: Pff. Ah,
vai...
E foi assim
que começou.
***
Alguns anos
depois, ela me disse que tinha uma entrevista para ir. Uma vaga de estágio
imperdível, e que precisava de pouso. E é claro que ela podia ficar aqui; a entrevista
era bem cedo, e pra quem pegava o ônibus de volta para outra cidade todas as
noites após a faculdade, seria muito mais fácil já estar por aqui. E ela ficou.
***
Quando ela
conseguiu aquela vaga, me mandou uma mensagem perguntando se poderia ficar aqui
por alguns dias. Duas semanas no máximo, só até encontrar um apartamento. E por
um momento eu senti um aperto: seria pedir demais da minha já demasiada zona de
conforto. Um abuso da minha boa vontade, da minha privacidade preguiçosa, e da
minha rotina solitária com a qual eu aprendi a lidar com o passar dos anos. Mas
seriam só duas semanas, Igor. Que motivos você tem para dizer “não”, realmente?
É claro que
você pode ficar aqui.
***
(Um mês
depois)
ELA: Eu vou ao mercado.
EU: Tudo bem.
ELA: Você quer ir?
EU: An... Você quer que eu vá com você?
ELA: Não.
EU: Você quer que eu *queira* ir no mercado com você?
ELA: Não.
EU: Você quer que eu *queira* ir ao mercado com você, sem ter que
perguntar se você quer que eu vá ao mercado com você?
ELA: Sim.
EU: Ah, ok. Vamos lá.
E foi tão
natural, como se ela estivesse ali desde o começo.
***
Quando dois
meses se passaram, eu me peguei pensando no quanto nós já havíamos brigado.
Sobre ela deixar a porta do box do banheiro aberta – eu queria ela fechada. Sobre
presunto e queijo – ou ela comia o meu quando acabavam, ou eu acaba comendo o
dela escondido. Sobre ela nunca usar o porta-copos da mesinha de centro. Sobre
a janela aberta no quarto dela sempre fazer com que a porta batesse. Sobre a
louça suja. Sobre o chinelo espalhado pela casa – com cada pé em um canto
diferente. Sobre marcas de tempero para carne e sabão em pó – que diferença
isso fazia?!
Não estava
sendo fácil dividir o mesmo espaço. Por outro lado, a casa nunca pareceu tão...
Cheia. Melhor ainda; a casa nunca pareceu tão viva. E mesmo quando as coisas já
pareciam estar acomodadas, eu resolvi formalizar:
EU: Por que você não fica aqui mesmo?
ELA: Eu quero ficar.
E ela ficou.
***
Com o passar
dos dias, qualquer coisa que acontecesse entre nós servia de motivo para
sentarmos na sacada e discutirmos sobre o quanto aquilo significava para nós.
Fosse durante o dia, entre revezamentos de copos de tereré, ou à noite entre
rodadas filosóficas de uísque. E ao olhar em retrospectiva, foram mais coisas
que nos uniram para conversar, do que nós preferíamos guardar para nós mesmos.
Nada passava batido por nós, e tudo poderia ser dito com sinceridade.
Era o tipo
de compartilhamento livre e suave que eu jamais considerei ser possível. E o
tipo de amizade que, por mais que houvessem outros colegas passando por nós, a
sacada e o sofá da sala, não era algo que pudesse ser comparado. Porque era
mais do que uma divisão de contas, ou um companheirismo informal. Era um
compromisso a ser respeitado. Uma família a ser honrada.
E as vezes
em que ela chegou em casa chorando, ou quando ela mesma me encontrava aos
pedaços pela casa, encolhido no meu quarto ao som de qualquer fundo
melodramático, com a porta entreaberta, ela sabia que podia se aproximar para
ajudar. E quando eu batia na porta dela, ela já sabia que as notícias não eram
boas. Dentre tantos outros rituais que nós aprendemos a criar e a obedecer, uma
coisa era fundamental: nós sabíamos que sempre estaríamos ali um pelo outro, e
tudo ficaria bem.
***
Ela nunca
soube lidar bem com o fim das coisas. Eu, por outro lado, preferia nem dar
chance para que qualquer coisa começasse. E por um bom tempo nós vivemos assim,
em extremos, porém teimosos em convencer o outro de que era necessário mudar,
crescer, viver. Mas nenhum dos dois estava realmente disposto a criar coragem
para isso. As coisas estavam bem do jeito que estavam, e enquanto não estivesse
muito frio para sentar na sacada lá fora, ou enquanto ainda fosse divertido
juntar as visitas para nossa já famosa foto no sofá, nós sentiríamos que nada
havia mudado.
Até que mais
alguns dias se passaram. Que se tornaram anos, que nos empurraram para frente.
Até nós descobrirmos que os nossos maiores medos precisavam ser enfrentados...
As coisas precisavam terminar para dar espaço para novos rumos.
E foi assim
que ela tomou a frente em tomar a coragem de dizer, finalmente, que terminar
era mais do que normal: era necessário.
***
Talvez eu
nunca saberei colocar em palavras tudo o que isto significou para mim. Afinal,
você quis dividir o mesmo espaço comigo. Eu, que por muito tempo vivi sozinho e
escondido do mundo, e me convenci de que isto poderia ser confortável o
bastante para não me incomodar pelo fato de que é impossível ser feliz sozinho.
Você me obrigou a fazer as refeições na mesa da cozinha, por onde eu estava
mais acostumado a desviar do que me sentar para ter algum momento em família. Você
sempre teve um filme, ou uma cena de algum seriado, ou uma música para te
ajudar a explicar alguma lição que eu precisava aprender. E quando eu não
aprendia, e me colocava a chorar, você foi curta e grossa comigo: sofreu porque
quis. Você havia avisado, e era bom eu aprender de uma vez por todas que certas
pessoas não valem a pena, que os meus valores precisavam ser conservados, e que
não há nada de errado em dizer “não”, ou em desistir de causas verdadeiramente
perdidas, ou de chorar um pouco por isso se for necessário. Mas só um pouco.
Você fazia o
copo do tereré na medida que achava correta, enquanto confiava em mim para a
tarefa mais simples de preparar o suco. E em troca eu confiava em você para
servir o meu uísque, no limite exato para nos manter entre a filosofia e a
ressaca do dia seguinte.
Você fez de
tudo para que eu não desistisse de mim, mesmo quando eu achava que não havia
mais forças para lutar. E quando realmente não houve, você me acolheu.
Ah, a
ironia.
***
Por anos eu
repeti que o mundo não é mais um lugar romântico, mas que algumas pessoas ainda
conseguem permanecer assim, e que cabe a elas uma promessa.
Eu sempre
soube que você também era uma dessas pessoas. Senão o que mais explicaria os
últimos dois anos e meio?
E aqui
finalmente tenho a redenção de me ver livre do inefável: foi amor.
***
ELA: Quem faz o brinde hoje?
EU: Eu faço. Um brinde a nós.
ELA: Saúde.
E foi assim
que Joyce Camapum morou comigo por
dois anos, seis meses e uma semana. Ela sempre soube, desde o começo, que isto
aconteceria. E por ela, e tudo o que ela me trouxe, eu só posso dizer: muito obrigado.
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