Dizem que são nos momentos
difíceis em que nós descobrimos exatamente do que nós somos feitos. Que a força
que realmente temos, dentre outras virtudes encobertas pelo fluxo rotineiro de
serotonina no nosso organismo, permanecem em inércia até que algo impulsione
aquela adrenalina comovente que nos faz superar distâncias, encarar desafios e
etc. Mas pra ser sincero, quando se está empenhado em superar ou encarar
qualquer coisa, quem de nós realmente pára pra refletir sobre o quão resiliente
está sendo naquele exato momento?
Eu prefiro acreditar que as lições aparecem mesmo
de repente, em uma tarde chuvosa de um dia aleatório, quando se está voltando
do trabalho carregando um guarda-chuva meio entortado pelo vento insensato e sacolas
com materiais de limpeza e um jantar congelado para microondas, que algo irá te
lembrar do que passou e o que aquilo significou. Exemplos corriqueiros e
aparentemente insignificantes, mas que passam sutilmente por você – porque para
quem já enfrentou o inferno, o que é uma pequena garoa em direção ao céu?
Minha primeira lembrança de superação nesta
vida recém-graduada que tento levar é de ser um garoto espinhento, revoltado e ostensivamente
acima do peso para quem tinha apenas 12 anos, que contra a sua vontade
concordou em ir até o banco que ficava há “mil
quadras” de casa (porque quando se é jovem, tudo parece estar há “mil unidades de distância” da onde se
precisa chegar) para pagar um boleto para sua mamãe querida que estava com os
pés cansados. Mas como gratidão é algo inexistente até um certo grau de
maturidade ser atingido, ela disse que eu poderia ficar com o troco da conta se
eu fosse até lá pagá-la.
E é claro que ao chegar lá, haviam “mil” pessoas já aguardando na minha
frente, na “quilométrica” fila de
espera. E como se as coisas não pudessem pior ainda mais, diante da minha ótica
juvenil de mundo (que, convenhamos, ainda não mudou tanto assim), a bateria do
meu Nokia 3140 acabou e nem o jogo da
cobrinha eu teria para passar o tempo. A
única alternativa que me restou foi... Existir. Em pé. Por quase três horas. Porque, segundo a lei que rege o
universo e boa parte dos meus dramas existenciais, se existe a possibilidade de
algo demorar para mim, então demorará no máximo permitido antes de atingir o “para sempre” – denominado pelo Vinicius
como: “que seja eterno enquanto dure”.
Porque é óbvio que eu não ficaria lá para sempre, mas esta definitivamente
seria a sensação que eu teria pelo tempo que eu continuasse lá. Em pé.
Em outra ocasião (que pode ter sido tanto
antes quanto depois disso, já que quando se tem 12 anos, esta parece ser uma
idade que perdura até você adquirir mais alguns centímetros que te garantam um
assento na mesa dos adultos nos almoços de domingo na casa da tia Judite), eu
me lembro de ter sido submetido ao ritual mais lento e doloroso que qualquer
criança espinhenta, revoltada e preguiçosa poderia contemplar: acordar cedo
para ir à missa no domingo de manhã -
antes de partir para o almoço na casa da tia Judite, é claro.
Independente de raça, credo ou religião, quando
se tem 12 anos tudo mais que não envolva desenhos animados, salgadinhos ou
jogos de computador (caso você tenha sido uma das crianças pioneiras da era
merthiolate-que-não-arde no começo dos anos 2000), todos as leituras, sermões e
testemunhos parecem os mesmos quando se está diante de uma missa matinal – que
parece durar bem mais do que uma hora e pouco menos do que “para sempre”. E me lembro de ter insistido em conversar, me
remexer constantemente no banco e cutucar meus parentes na esperança de que
pudesse ser liberado para esperar o término daquela cerimônia sagrada sentado
no carro no estacionamento escutando as 10 mais pedidas da Jovem Pan, até
receber um conselho da minha tia (que não era a Judite):
- Igor, está
vendo este folheto? Aqui tem todos os textos que serão lidos durante a missa.
Sabia que ela passa mais rápido se você acompanhá-la? Se atravessá-la junto com
todo mundo?
Atravessar. Este era o segredo de suportar
situações difíceis, e agüentar momentos enfadonhos, fossem eles na fila do
Itaú, no banco da igreja, ou no limite do seu relacionamento com alguém. As
coisas ficam mais leves se você primeiramente aceitar que elas existem, e em
seguida se determinar a ultrapassá-las com consciência de que elas irão
terminar, desde que você se empenhe, participe, tome atitudes. Eu me lembro de
aprender isso com 12 anos, e de nunca mais ter enxergado qualquer dificuldade
sem me lembrar de ser espinhento, gordo e obrigado a suportar uma fila de banco
por três horas – de pé. Foi difícil, foi horrível, foi insuportável – mas só
passou quando eu comecei a prestar atenção nas pessoas que estavam na minha
frente, no trabalho que o pessoal naqueles guichês estavam fazendo, e que eu
não estava fazendo isto só por mim, mas para ajudar a mamãe que trabalhou o dia
todo e não agüentava mais ficar de pé.
É claro que o meu instinto de
auto-preservação – que, do latim, significa “piger”, ou, em português chulo, “preguiçoso” – automaticamente responde “não” mentalmente quando me pedem algo, assim como minha primeira
reação diante de alguma dificuldade (que não necessariamente seja difícil, mas
que me tire nem que seja um milímetro fora da minha zona de conforto) é de
negá-la até conseguir com que eu não precise mais responder por ela. Mas isto
não faz com que elas desapareçam; pelo contrário, elas me incham ainda mais de
preguiça.
Eventualmente eu aprendi que grande parte da
vida é obrigatória. Você precisa acordar cedo para ir trabalhar, levar
guarda-chuva se achar que vai chover, passar no mercado para comprar mais presunto,
lavar a louça que ficou suja desde que saiu de casa de manhã, dentre tantas
outras coisas ao longo do dia até que você finalmente possa se entregar ao
prazer inigualável e universal de se entregar ao nada absoluto e à inércia do
mesmo, enquanto se afunda no sofá. Mas às vezes a vida parece pesada demais, os
dias se saturam, a paciência enxuta e os insights esfriam, o que atrapalha
muito em ter a noção de que é preciso existir durante o necessário e acompanhar
os folhetos de missa por aí, sejam eles eternos enquanto durarem, se quisermos
ser felizes.
E é por isso que eu advogo contra a velha
teoria sobre momentos difíceis e as lições de vida que eles trazem. Vez por
outra, não sobra tempo para estudá-los. Só depois que se olha para trás mesmo,
com distância.
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