Pular para o conteúdo principal

A odisseia do transporte público


Andar de ônibus é mais que uma modalidade urbana; é uma educação. Da física – ao aprender que uma mão não será o suficiente para te amparar quando ele faz uma curva aberta – até a religiosa – quando você avista seu número se aproximando do ponto e reza para que dê tempo de embarcar.

Salvo alguns anos do meu ensino fundamental, em que a sorte ainda me permitia depender de várias opções de linhas que passavam na frente da minha casa para me levar até a escola, eu nunca realmente dependi de ônibus. Mais do que isso, sempre fiz questão de provar o contrário. Como quando aprendi a ir andando por diversos caminhos até o centro de Londrina, e a transitar pela cidade para chegar a qualquer outro destino que desejasse ir. Até a prova definitiva, durante os meses que morei no anexo Londrinense batizado de Cambé, quando perdi o único ônibus metropolitano que passaria pela próxima hora. E ao avisar o horizonte com descrença e frustração, pensei comigo mesmo: “Pelo tempo que vai levar para o próximo ônibus passar, eu poderia até ir à pé...” E fui.

Mas os tempos mudaram, assim como as estações, a direção do país e tudo mais. E por mais que eu quisesse culpar a economia para ter algum argumento no qual eu poderia me amparar quando o ônibus freia repentinamente, a verdade é que eu sou e sempre serei um produto das minhas decisões. E meu contexto de mobilidade será um escravo dos fatos que optei por assumir para mim. Neste caso em particular, a oportunidade de emprego que surgiu para mim era ridiculamente boa demais para deixar passar em branco. Mas não dormir no ponto em termos profissionais me levou a aprender na prática de uma vez por todas o que significa mesmo estar no ponto no horário. Inclusive como isso, às vezes, será indiferente à minha rotina. Os ônibus, assim como a vida em geral, não costumam esperar que você tome uma atitude.

Moral da história: pra quem estava à quinze tranquilos minutos de distância do trabalho, a mudança foi brusca. Agora são necessários três ônibus, duas baldeações e uma hora de viagem. E o processo tem sido tudo, menos tranquilo. Mas o planejamento não é tão impossível assim, especialmente na era dos aplicativos. Com alguns cliques você pode descobrir em qual deve embarcar, e qual deve passar batido. Mas este é só o ensino fundamental da trajetória. O ensino médio se baseia em aceitar que sua órbita pessoal nunca mais será só sua, e que o número de lugares disponíveis dentro do transporte não se limite aos sortudos 46 que conseguem ir sentados.

Dizem que a parte mais importante de qualquer viagem é o caminho percorrido e não o destino final. A exceção desta regra vive dentro das trajetórias municipais, quando ninguém – repito: ninguém – se diverte entre o embarque e o desembarque. A não ser que sua concepção de diversão inclua passatempos do tipo “o que aconteceria se eu puxar a alavanca da saída de emergência?” Ou então quando você descobre que ginástica rítmica está inclusa no preço da passagem: do contorcionismo para se encaixar na multidão, até o uníssono requerido para se apoiar entre as curvas do caminho, onde todos devem se inclinar para o mesmo lado caso não queiram esbarrar ainda mais em quem estiver ao lado.

Mas nem tudo são cheiros estranhos e olhares oblíquos e dissimulados que te encaram quando você embarca e decide que irá fazer parte da massa já apertada no carro. Quem nunca viveu a emoção de um grande amor ao encontrar aquela garota bonita todos os dias na mesma linha que a sua, e teve seu coração partido quando ela desceu em um ponto antes? E imaginou desde o encontro súbito até a primeira conversa, as risadas compartilhadas, o ombro amigo no banco, e o primeiro beijo sob as luzes fosforescentes? Seria digno de um romance Shakesperiano, se o cenário não fosse tão apertado.

No final das contas, andar de ônibus é uma escolha de poucos e uma necessidade de muitos. E agora que faço parte do segundo grupo, o melhor a fazer é aceitar que existem coisas neste mundo que simplesmente estão além do meu controle. E que a principal delas é a grade de horários da linha que eu preciso pegar para chegar ao trabalho. Apesar dos pesares, minha educação está bem encaminhada, e o restante é só uma questão de prática. Mas o sonho da formatura ainda permanece: o dia em que eu conseguir ir sentado.

Além da economia do país, é isso que nos move adiante.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os 5 estágios do Roacutan

            Olá. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sou um alcoólatra. Muito pelo contrário, sou um apreciador, um namorador, um profissional em se tratando de bebidas. Sem preconceito, horário ou frescura com absolutamente nenhuma delas, acredito que existe sim o paraíso, e acredito que o harém particular que está reservado para mim certamente tem open bar. Já tive bebidas de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, assim como todas as ressacas que eram possíveis de se tirar delas. Mas todo esse amor, essa dedicação e essas dores de cabeça há muito deixaram de fazer parte do meu dia a dia, tudo por uma causa maior. Até mesmo maior do que churrascos de aniversário, camarotes com bebida liberada e brindes à meia noite depois de um dia difícil. Maior do que o meu gosto pelos drinques, coquetéis e chopes, eu optei por mergulhar de cabeça numa tentativa de aprimorar a mim mesmo, em vês de continuar me afogando na mesmisse da minha mela...

A girafa e o chacal

Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal . Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal.  De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos.  Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ...

Wile E.: o gênio, o mito, o coiote

Aí todo mundo no Facebook mudou o avatar para a imagem de algum desenho e eu não consegui achar mais ninguém, mas depois de um tempo eu resolvi brincar também. O clima de celebração do dia das crianças invadiu as redes sociais de tal maneira que todos nós acabamos tendo vários flashbacks com os desenhos de nossos colegas, dos programas que costumávamos assistir anos atrás quando éramos crianças e decorar o nome dos 150 pokemons era nosso único dever. E para ficar mais interativo, cada um mudou a imagem para um desenho com qual mais se identifica, e quando a minha vez chegou, não tive dúvidas para escolher nenhum outro senão meu ídolo de ontem, de hoje, e de sempre: o senhor Wile E. Coiote. Criado em 1948 como mais um integrante da família Looney Tunes, Wile foi imortalizado pelo apelido e pela fama de fracassado em sua meta de vida: pegar o Papa Léguas. Através de seu suposto intelecto superior e um acesso ilimitado ao arsenal de arapucas fornecidas pela companhia ACME, Wile tento...