Pular para o conteúdo principal

Relacionamentos imaginários IV


Apesar de todos os obstáculos, toda a correria e cansaço do dia a dia, de tentar lembrar do que precisa comprar quando passar no mercado à caminho de volta para casa, depois de duas provas complicadas que seus professores resolveram juntar em uma mesma noite para apressar o fim do semestre letivo, de conseguir retornar as treze chamadas da sua mãe no seu celular que você não pôde atender antes porque não escutou o toque devido ao barulho do trânsito, você finalmente alcança a cama da onde saiu para enfrentar o resto do mundo pela manhã e pára pra suspirar em alívio. E então você recebe aquela mensagem, que faz com que tudo de apressado e desgastante ao redor dela simplesmente desapareça. Porque aquele é o momento pelo qual você esperou o dia todo. O momento em que vocês pudessem estar juntos de novo, mesmo separados. Particularmente falando, eu acho isso incrível. O fato de que, mesmo depois da maratona que corremos ao longo das horas comerciais, das grades curriculares e dos afazeres domésticos que parecem estar sempre atrasados, as pessoas ainda conseguem se encontrar. E se gostar. E disporem de alguns minutos a mais na cama, deitadas apenas ao som do toque do celular a cada nova mensagem daquela pessoa. É a realidade dos relacionamentos modernos, e é algo pelo qual eu sou simplesmente apaixonado.

Mas pelos motivos errados. Ou melhor, pelos relacionamentos errados.

***

Dia desses eu estava conversando com alguém sobre relacionamentos. E ouvi me contarem sobre como se conheceram, as mensagens que estavam trocando, os encontros que tiveram, as discussões que já surgiram, as complicações envolvendo horários, ex-namoradas, ciúmes, ansiedade, insegurança, medo de deixar que alguém chegasse perto demais para causar mais algum estrago permanente... E sobre como apesar de tudo isto, ainda havia uma chance de que aquilo poderia se tornar algo sério. E foi algo que não me comoveu muito, visto que já ouvi e vivenciei em primeira mão tantas outras histórias que pareceram terminar antes de realmente começar, ou então foram rarefazendo-se a medida que a paixão esfriava e a rotina retomava o espaço que todo aquele furor havia ocupado. Enfim, tudo aquilo se resumiu a um simples diálogo:

- Acho que pode ser ela, mas não tenho certeza. É que na verdade...
- Namorar é chato. É isso que você está tentando dizer, não é?
- É. Exatamente. Mas o começo é tão bom! Quando se está conhecendo a pessoa, descobrindo pouco a pouco quem ela é, do que ela gosta, o que sente sobre você...
- Sim. A antecipação é legal. O problema é quando o prólogo termina e o interlúdio toma conta. A rotina, a calma, a despreocupação. Você nunca realmente recupera aquela emoção a cada nova mensagem que ela te manda. Depois de um tempo você percebe que pode esperar para vê-la. Que não precisa respondê-la naquele exato segundo, caso contrário todo o amor que vocês já construíram estará em perigo de extinção.
- E por que será que isso acontece?
- Eu não sei. Já reparou como a véspera de Natal é muito mais aproveitada do que o próprio dia de Natal? E como a verdadeira festa acontece na véspera do Ano Novo? E para o primeiro de Janeiro fica a bagunça, as sobras e a preguiça. O namoro é um primeiro de Janeiro sobre o qual ninguém se atreve a reclamar. Afinal o ano só começou e há tanto pela frente. Mas que ano será esse que começou com base em latinhas de cerveja amassadas pelo chão e pernil requentado?
- Talvez o segredo seja esse mesmo. A antecipação. A promessa. O que está por vir parece sempre mais interessante do que há aqui agora. Enquanto forem apenas duas pessoas distantes, trocando mensagens e compartilhando vidas separadas, as coisas parecem mais emocionantes. Mas quando as mensagens de madrugada viram lembretes do tipo “Você vai passar por algum mercado à tarde? Acabou o leite!” ou “Não estou afim de ir no churrasco do seu amigo hoje, inventa uma desculpa!” no meio da tarde... Sei lá. Amor parece mais interessante quando está à distância. Perto demais, disponível demais, parece comodidade. Tipo Netflix ou ar-condicionado: é muito bom, mas em excesso pode causar dores de cabeça.

***

- Ultimamente ela não me responde mais direito.
- Como assim?
- Bom, no começo éramos instantâneos. Narrando cada minuto do dia como se cada atividade fosse algo imperdível. E com fotos, ainda por cima, para nos sentirmos mais próximos, eu acho. Anexos constantes de rótulos de garrafas e flashes do pôr-do-sol. E as mensagens de voz à noite. Ah... A voz cansada dela, já com a cabeça no travesseiro, era tudo o que eu precisava ouvir para dormir bem. Isso e o “boa noite” dela.
- E agora?
- Agora é isto. Mensagens enviadas, recebidas e ignoradas com sucesso. Me sinto um refém desses malditos riscos azuis do WhatsApp. Se ela leu, por que não responde?!
- Eu não sei, cara.
- Esses dias mesmo, ela disse também que poderia ser eu. Que estava gostando cada vez mais e mais. E agora isso. Não sabia que me importava tanto assim.
- É, a gente nunca sabe. Até o momento em que se torna indisponível. Independente se um dia a pessoa realmente esteve disponível para nós. Nunca se sabe. Quem vê status de WhatsApp não vê coração.
- Eu não estou brincando, Igor.
- Eu sei! Com quem acha que está falando? Lembra da...
- Ah, é. Sim. Desculpe. Já faz quanto tempo que não se falam?
- Tempo suficiente para te dizer com certeza que deveríamos passar menos tempo em relacionamentos imaginários, e mais tempo vivendo a nossa vida. Mesmo que seja por nós mesmos, sem “bom dia” nem “boa noite”.
- Ainda sente falta dela?
- Toda manhã e toda noite.

***

Eu continuo fascinado por relacionamentos. Pelo cuidado com o qual escrevo aquelas primeiras mensagens e pelo encantamento que sinto pelas que recebo de volta. Tudo é apaixonante no começo quando não há vidas realmente envolvidas; apenas dois IPs distantes à procura de uma nova conexão. Mas depois de uma série de primeiros encontros e últimas palavras trocadas, de músicas que perderam sua melodia em troca da lembrança de alguém que talvez nem pense mais em mim, e de uma lista de contatos no celular cheia de vidas inteiras que poderiam ter sido e não foram, tudo o que eu espero agora é que uma das promessas que já fiz por aí se cumpra. Que alguém me prove que o nosso prólogo valeu a pena ser escrito e que a nossa história está só começando. Alguém que não me faça sentir desconectado quando estiver online sem mim.

Enquanto isso chega de promessas vazias, interlúdios interrompidos e relacionamentos imaginários. Já faz algum tempo que carrego comigo a seguinte mensagem: “O mundo não é mais um lugar romântico. Algumas pessoas, no entanto, ainda são. E a elas cabe uma promessa: não deixe o mundo vencer.” É algo que ainda carrego comigo, mas algumas promessas podem se tornar muito pesadas caso você esteja sozinho para levá-las adiante. Alguns relacionamentos podem parecer mais importantes do que realmente são. Cabe a você decidir por quem vale a pena perder o seu sono e para quem vale a pena desejar um bom dia.

Quanto a mim, hoje eu durmo muito melhor com o celular desligado. E ele funciona bem melhor depois que deletei aquele aplicativo que vivia dizendo que não havia ninguém perto de mim. Como se eu não soubesse.


PS. A quem interessar possa:

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os 5 estágios do Roacutan

            Olá. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sou um alcoólatra. Muito pelo contrário, sou um apreciador, um namorador, um profissional em se tratando de bebidas. Sem preconceito, horário ou frescura com absolutamente nenhuma delas, acredito que existe sim o paraíso, e acredito que o harém particular que está reservado para mim certamente tem open bar. Já tive bebidas de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, assim como todas as ressacas que eram possíveis de se tirar delas. Mas todo esse amor, essa dedicação e essas dores de cabeça há muito deixaram de fazer parte do meu dia a dia, tudo por uma causa maior. Até mesmo maior do que churrascos de aniversário, camarotes com bebida liberada e brindes à meia noite depois de um dia difícil. Maior do que o meu gosto pelos drinques, coquetéis e chopes, eu optei por mergulhar de cabeça numa tentativa de aprimorar a mim mesmo, em vês de continuar me afogando na mesmisse da minha mela...

A girafa e o chacal

Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal . Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal.  De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos.  Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ...

Wile E.: o gênio, o mito, o coiote

Aí todo mundo no Facebook mudou o avatar para a imagem de algum desenho e eu não consegui achar mais ninguém, mas depois de um tempo eu resolvi brincar também. O clima de celebração do dia das crianças invadiu as redes sociais de tal maneira que todos nós acabamos tendo vários flashbacks com os desenhos de nossos colegas, dos programas que costumávamos assistir anos atrás quando éramos crianças e decorar o nome dos 150 pokemons era nosso único dever. E para ficar mais interativo, cada um mudou a imagem para um desenho com qual mais se identifica, e quando a minha vez chegou, não tive dúvidas para escolher nenhum outro senão meu ídolo de ontem, de hoje, e de sempre: o senhor Wile E. Coiote. Criado em 1948 como mais um integrante da família Looney Tunes, Wile foi imortalizado pelo apelido e pela fama de fracassado em sua meta de vida: pegar o Papa Léguas. Através de seu suposto intelecto superior e um acesso ilimitado ao arsenal de arapucas fornecidas pela companhia ACME, Wile tento...