Eu mudei. Os primeiros dias não foram fáceis. Tudo parecia estranho, estrangeiro, esotérico. Aos poucos assimilei o mundo ao meu redor, e a realidade de que ele não era mais o mesmo. Em um tempo invariavelmente paralelo, passei a assimilar também o fato de que as coisas jamais seriam como antes.
Esta parecia ser a proposta da vez: respirar fundo, seguir adiante, e reconstruir. Começando por tentar tornar o desconhecido familiar, passando pelos eventuais descaminhos que a gente toma até entender exatamente como podemos nos sentir à vontade de novo, até a vida enfim voltar algo semelhante à… vida.
E só pra constar: não, eu não estou falando do apartamento. Até porque em menos de duas semanas, já fui capaz de restaurar o mínimo de ordem necessária para que a minha rotina possa continuar se materializando, todos os dias. Um joelho ralado pode doer bem menos que um coração partido, mas não é nada comparado aos dias off line, sem instalações hidráulicas e sem superfícies para aparar todas as minhas tralhas, que estou aprendendo a superar.
***
Sim, eu já fiz isso antes – por anos. Fiz tão bem, inclusive, que levou um tempo ainda maior para que eu me tornasse capaz de permitir que qualquer outra pessoa fosse convidada a descobrir o meu mundo. Começando por tirar os calçados na entrada, e aprendendo por livre e espontânea pressão que nunca, sob circunstância alguma, você irá deixar de usar um descanso de copo na minha mesinha de centro.
Morar sozinho me tornou obsessivo, controlador, egoísta, orgulhoso e tão metafórico quanto fisicamente fechado. E talvez eu soubesse exatamente o que fazer agora, pela segunda vez, se não fosse pelo fato de que 2018 tem demonstrado ser uma série insensível de exercícios de desconstrução. O relacionamento, a família e o lar que construí ao longo do ano passado, em questão de decisões impensadas, crises econômicas e muitas, mas muitas caixas, acabaram.
Este sou eu: sozinho de novo. E tem dias que eu não sei o que fazer. Problemas que ainda não descobri como resolver. Sentimentos que ainda não tive coragem de desencaixar. “Uma vida inteira que poderia ter sido e não foi”, que agora pode até ser, se não fosse por mim mesmo. A insustentável leveza do ser solteiro, desimpedido e dono de todas as possibilidades do mundo – enquanto está à mercê das mesmas também.
Existem momentos que inspiram literatura, como a primeira vez em que sentei no chão, encostado em um dos cantos da minha quitinete, nove anos atrás, e me perguntei: “e agora?”. E existem momentos, como os dos últimos dias, em que fiz o mesmo movimento e respondi: “é aqui que eu fico”.
Eu não voltei para casa, nove anos atrás, quando o mundo ao meu redor desmoronou e não havia nada nem ninguém para me ajudar. As noites mal dormidas, os textos acumulados porque não havia como serem publicados, os telefonemas desesperados de madrugada pedindo ajuda mas sem saber dizer exatamente do que eu estava precisando, estão de volta. Mas a minha atitude sobre eles também permanece a mesma: eu não vou embora.
Eu não tinha certeza disso até sair de casa esta manhã para ir trabalhar. Olhei para trás antes de fechar a porta e percebi que, apesar dos pesares, aquele apartamento vazio não estava mais tão vazio. Havia vida se formando ali. Um lar ressurgindo por alguém que, mesmo quando passando a maior parte do tempo reclamando sobre não saber o que fazer, ainda foi capaz de pendurar seus quadros na parede de novo. Sentindo orgulho por ver que não foi o mundo que desmoronou: eu só mudei. Pra pior ou pra melhor, no final das contas, só vai depender de mim. É aqui que eu fico.
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Enquanto isso, entre o mundo novo e o antigo, entre decidir o que continuaria comigo e do que finalmente abriria mão, havia você. A mesma que vem assombrando os meus pensamentos com lembranças opacas de um amor que não estava ali. A mesma que agora faz as mesmas declarações de antes, para alguém novo. A mesma que promete estar tão feliz ao lado de alguém, que por pouco não me esqueço de que as exatas palavras costumavam ser dirigidas a mim. Eu desbloqueei você. Visitei os cartões de visita que deixa expostos para o mundo, passei os olhos pelos sorrisos que está esboçando ao lado dele, e descobri o que mais andou mudando por aí também.
A verdade é que eu desbloqueei você, para me desbloquear também. Se eu quero mesmo que outra pessoa entre em minha vida, você precisa sair primeiro – de uma vez por todas. Foi por isso que, enquanto separava o que levaria comigo e o que deixaria para trás, você e tudo que vivemos juntos ficou. Suas coisas, além daquela minha aliança que estava sendo carregada comigo pra lá e pra lá, estão em uma caixa – sua, também – ao canto do quarto de um apartamento agora vazio. Não, eu não sei como você poderia ir buscá-las; isso é problema seu. E agora que pode me visitar também, pode ficar com essas últimas palavras também, porque ninguém nunca mais escreverá sobre você. Não como eu.
É aqui que eu te deixo.
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