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A infância problematizada


Quando foi o seu primeiro trauma? O primeiro choque de realidade (ou com a ficção) que te alertou para os perigos do mundo? Bom, modéstia à parte, eu tive os dois em um combo perfeito de angústia e terror. Entre os quatro e sete anos, dois eventos marcaram a minha infância: a separação dos meus pais, e cerca de dez minutos de “Brinquedo Assassino 3”, sendo exibido na distinta faixa da Sessão da Tarde. Os anos 90 jogavam conosco por outras regras, definitivamente.

Há quem defenda que não existem sinais para avisar que sua infância terminou – em vez disso, há apenas uma suave transição de fases entre a inocência infantil e o princípio da devastação pré-adolescente. Enquanto isso, outros – assim como eu – preferem acreditar que, vez por outra, o mundo tão familiar pode subitamente voltar-se contra você, separando-o da estabilidade – ou, não obstante, emprestando vida a objetos inanimados por meio de magia vodu. Varia de família para família.

Duas coisas, portanto, me assombraram com o passar dos anos. A noção perpétua de que relacionamentos estão fadados a um início de contos de fadas, interlúdio matrimonial, e separação de bens e serviços; e a crença injustificável de que brinquedos criam vida quando você não está atento a eles – e não de um jeito lúdico e musical à lá Toy Story. Como se não bastassem as inseguranças, parecia que até meus relacionamentos imaginários eram disfuncionais. Mas como é de se esperar de traumas de infância e malefícios da vida a dois, todos são irracionais.

Enquanto lentamente superei a noção de que relacionamentos podem perdurar ao longo de uma vida inteira – ou não haveria tantos casais idosos provando o contrário em ensaios fotográficos épicos – o medo juvenil por parte de um boneco animatrônico sempre me rondou. Fosse por meio de um comercial na TV, anunciando um dos seus filmes a ser exibido na grade, ou pela loja de brinquedos da minha cidade que tinha em seu catálogo o famigerado Chucky à venda. Algo que me perturba até hoje: quem em sã consciência levaria isso para casa?!

Eventualmente, com o passar de muitos, mas muitos anos além do que deveria ser necessário, eu passei a questionar a lógica do mundo ao meu redor. A mesma lógica que rege relacionamentos é, automaticamente, a mesma que dita que brinquedos não terão vida própria entre meia noite e seis da manhã: a tal da realidade. As pessoas ficam juntas quando querem, e esforçam-se para que seu compromisso perdure eternamente – enquanto, bom, há de durar. E a não ser que um chip de inteligência artificial ordene seu novo melhor amigo a te proteger (ou te matar), não há porque temer movimentos bruscos. 

Vinte anos depois de assistir o que até então havia sido minha única amostra do terror de Chucky, eu passei a consumir pequenas doses diárias de terapia de exposição: assistindo clips no Youtube (obviamente, no mudo). Ao lentamente introduzir som às experiências, eu descobri algo que já ouvira falar antes, mas custava a acreditar: o Chucky é hilário. Sim, ele é produto de um ritual disfuncional, narcisista, com ressentimento de tudo (principalmente da sua forma), com tendências violentas e aspectos desfigurados. Substitua sua onda de assassinatos por crônicas sarcásticas e as cicatrizes de facadas por acne, e perceba o quanto temos em comum.

O que me levou a “enfrentar meu medo” – em aspas somente para acalmar minha consciência de que isso não me deixou arrepiado, insone e paralisado por anos (apesar de deixar) – foi exatamente a tal da lógica da realidade. Existem coisas mais importantes para temer neste mundo – como, por exemplo, ser de fato incapaz de levar um relacionamento sério adiante, sem estar sempre atento às saídas de emergência mais próximas em caso de turbulência a bordo. O que acontece quando um objeto neurótico encontra uma força nervosa? Mas aí passamos de Chucky para Woody Allen, que é tragicômico de um jeito diferente.

Estatísticas apontam que a taxa de divórcios é 100% maior que a de homicídios cometidos por pedaços de plásticos armados com facas e atitudes negativas. O que nos traz aos meus novos medos: o declínio da empregabilidade nacional, a falta de estímulo empresarial na gestão da inovação e incentivo aos empregados(as) referente aos cuidados voltados à saúde mental, queda do PIB, desequilíbrio político e suas ramificações socioeconômicas. E, claro, meu pesar por nem sempre me esforçar para demonstrar ao meu amor o quanto ela é importante para mim.

No final das contas, a pergunta que precisa ser feita é: quais traumas você ainda carrega consigo? Negando a ideia de que o que não te mata, se divorcia, como irá enfrentar o que ainda te assusta? É no mínimo mais benéfico acreditar que o que tanto te apavora, na verdade pode ser engraçado. 

É isso, ou viver com medo de assistir o Chucky jogando o carro da Britney Spears precipício abaixo. Por bem ou por mal, ainda bem que a gente cresce.

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