Falando como alguém que recém terminou de assistir Glee pela enésima vez, é fácil dizer que não é uma experiência tão inspiradora como foi à primeira vista. Especialmente se você arrisca descobrir o que aconteceu com o elenco nos últimos dez anos, algo que definitivamente não recomendo caso queira manter viva a música que habita em você. Mas para você que por ventura não sabe do que eu estou falando, Glee foi um seriado americano musical, jovem, irreverente, desconcertante, frustrante, avassalador e, em certos aspectos da vida real, trágico. No entanto, em meio a todo o caos narrativo, furos de roteiro e total insanidade que rege a mente produtiva do criador Ryan Murphy, havia uma promessa. Uma, inclusive, muito similar àquela que tento repetir a mim mesmo, todos os dias.
O mundo não é mais um lugar romântico. Algumas pessoas, porém, ainda são, e a elas cabe uma promessa: não deixe o mundo vencer.
Continue lutando, penso eu. Não deixe de acreditar, eles reforçaram. E cá estamos, dez anos depois. Glee segue disponível no catálogo da Netflix. E eu... Bom... Eu não sei por quanto tempo vou continuar disponível em Foz do Iguaçu.
Em 2019, Glee e eu completamos dez anos de suposta independência. Faz dez anos que Glee migrou da imaginação de Murphy para o mundo – ou, o mundo abrangido pelo canal Fox. E faz dez anos que eu migrei de Londrina para Foz do Iguaçu, com uma modesta escala em Cascavel – precisava crescer um pouco, aprender o que significa ser inefável e resiliente, e buscar um diploma.
Voltando à música tema, dessa vez não revisitei todas as 729 performances sozinho. Muito pelo contrário – dando continuidade à provação eterna envolvida em fazer parte de um relacionamento, adentramos felizmente à fase de compartilhar os seriados com os quais aprendemos a ser quem somos. Ela, a órfã de Prison Break (outra cria da Fox), adepta a histórias de suspense, drama, intriga e ação, completamente adversa a musicais, adolescentes expressando seus sentimentos das piores formas possíveis, entre outros dramas inconsequentes natos do público alvo na mira de Glee, à época. Eu, o insustentável, irremediável, incorrigível discípulo de que a música move o mundo – ora em musicais completos, ora em trilhas sonoras ecoando além dos meus fones de ouvido, a ponto de incomodar outras pessoas ao meu redor em transportes públicos. Mas aceitamos um o desafio do outro, embora confesse que, ironicamente, acabei por fugir de Prison Break. Glee, por outro lado, lentamente tornou-se parte da nossa rotina conjugal, e noites mornas de primavera precoce, pizza e cerveja nunca mais serão as mesmas agora. Tudo parecia harmonioso, se eu concordasse em não cantar junto com os personagens.
Como é de se esperar de Glee, erros de continuidade e até mesmo de lógica rapidamente chamaram a atenção dela. Sempre pegos em flagrante, ela proclamava, frustrada: “Como isso pôde acontecer?! Como ela acreditou naquilo?! Como eles tiveram tanta sorte?! Como eles sempre ganham?!” A resposta era sempre a mesma, a ponto de tornar-se um jargão entre nós. “Não vale a pena questionar; é Glee sendo Glee.” Talvez fosse por isso que sempre nos pediam para não deixar de acreditar – Glee fazia sentido dentro de si e nada mais. Ou você mergulha de cabeça, ou abandona a causa, igual a tudo na vida.
Por que estou contando isso? Bom, porque seria bom se houvessem mais momentos Glee no mundo lá fora. Não no sentido de nos depararmos com performances espontâneas, completas com coreografias impecáveis nunca antes ensaiadas e barítonos espantosamente afinados. Não. Queria que o mundo permitisse momentos mais Glee, onde perdemos até onde deveríamos perder, para finalmente vencermos porque o roteiro fez com que merecêssemos subir ao pódio. Ou talvez eu só esteja com medo de que meu tempo de exibição no catálogo de Foz do Iguaçu esteja chegando ao fim, e ninguém lembrará da companhia que prestei em momentos bons, ruins, tragicômicos ou musicais. Menção honrosa para todas as vezes que me rendi a cantar “Evidências”: na rua, na chuva, na fazenda, nos bares, nas avenidas e nas festas de final de ano da firma.
Glee surgiu no mesmo ano em que decidi sair de casa para crescer, dez anos atrás. Em 2015, exibiu seu último episódio – graciosamente intitulado de “Sonhos Se Realizam”, porque não havia razão, lógica ou necessidade de encerrar Glee de outra maneira que não fosse um final feliz para todos os envolvidos. Foi no mesmo ano em que decidi arrumar minhas malas mais uma vez, rumo à Foz do Iguaçu e a carreira que abandonei em 2009 – o Jornalismo – sob a noção de que poderia realizar os meus sonhos também. De acordo com o roteiro da vida até então, eu gostava de pensar que merecia.
Mas... sonhos se realizam mesmo? Caso tenha duvidado de mim e sucumbiu à curiosidade de descobrir o que aconteceu com o elenco de Glee, os inevitáveis resultados falam por si só: duas mortes, uma prisão, enquanto os sobreviventes restantes residem no mesmo anonimato de onde a série os resgatou outrora. Glee parece ter sido um delírio. Um número musical, entre tantos produzidos pela série. Todo mundo cantou, todo mundo dançou, até que um dia a música parou de tocar. Pela duração de um single, sonhos se realizaram ou soaram possíveis por toda parte. E então você se lembrou de que estava no Brasil, não Ohio, e aqui estamos acostumados ao ritmo de artistas locais como Cazuza, outro ritmo passageiro. “A nossa música nunca mais tocou”, disse ele, de saída.
Pode ser que isso seja só um interlúdio. Uma pausa entre as performances para afinar os instrumentos, antes da orquestra retornar ao palco. Eu não sei. Só o que ouço falar há anos é como o show deve continuar, independentemente de qualquer drama por trás das cortinas. E só o que sei – ou melhor, aprendi – é que quando a sensação de que sonhos não se realizam de fato, eu só consigo me lembrar da canção que deu início a tudo.
Não deixe de acreditar, disseram. E eu sempre fiz jus às minhas promessas.
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