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Comédias para se ler na crise


O que pode ser considerado pecado capital para um jornalista admitir também é ironicamente verdade: eu não fui um jovem perdidamente apaixonado por ler. Pelo contrário: faria de tudo para fugir de uma interpretação de texto ou qualquer outra figura de linguagem envolvida em prestar atenção nas letras grafadas em páginas de papel. 

Não é a toa que hoje insisto na verdade universal que invariavelmente nos guia: somos todos frutos de ironias da nossa juventude.

Para me socorrer de um futuro analfabetismo funcional, meu pai deu um ultimato: levou-me a uma livraria e ordenou que eu escolhesse algum livro que me chamasse a atenção. Uma operação similar à sua tentativa de me incentivar a praticar um esporte – qualquer esporte – e a respectiva decepção quando eu, no auge do meu sedentarismo adolescente, sugeri destemidamente: “golfe?”. A diferença é que dessa vez não haveria negociação ou brechas; “escolha um livro que não tenha figurinhas pra ir pulando as páginas e terminar logo.

Vale ressaltar desde já. Pais: arrisquem-se com seus filhos por mais autoritário que possa parecer à primeira vista. Filhos: aceitem o fato de que seus pais realmente querem o melhor pra você. Talvez não funcionem como verdades universais, mas funcionaram para mim e pretendo passá-las adiante.

Enfim, entre as opções disponíveis naquela imensidão de prateleiras, algo chamou mesmo a minha atenção: um exemplar de “Comédias para ler na escola”, de Luis Fernando Verissimo, completo com uma caricatura do autor na capa. Uma coletânea de um tipo de texto que se tornaria essencial para a minha própria aprendizagem: crônicas. Pequenas e rápidas histórias com começo, meio e fim, geralmente em forma de ironia fina.

Ok, eu admito... Foi o desenho que chamou a minha atenção. Pais: aprendam a não exigir muito mais do que o repertório do seu filho compreende. Não sou pai ainda, mas isso parece ser bem sensato para qualquer contexto também.

O que aconteceu em seguida foi um milagre disfarçado de infortúnio: um engarrafamento quilométrico para voltar para casa que me incentivou a dar uma espiada no livro enquanto esperava. Uma espiadinha que evoluiu para um capítulo, que evoluiu para dois, três, metade do livro... Não era uma obra longa, pela facilidade de leitura que continha, ao contrário do longo caminho adiante. Superando as expectativas, aconteceu o seguinte: eu já havia terminado o livro quando chegamos em casa. Além disso, eu queria outro. Aquele cara era bom.

Meus professores do ensino infantil e fundamental me ensinaram a ler e escrever. Mas daquele dia em diante, Luis Fernando Verissimo me ensinou a gostar de ler e escrever. Também me ensinou a arte do sarcasmo literário, mas isso é um efeito colateral destinado a outra discussão.

Anos mais tarde, minha irmã apresentou a mesma resistência à literatura. Esquecendo-se da fórmula que aplicou outrora, meu pai pediu que eu tentasse ajudar. Como é de se esperar, optamos por receitar os mesmos remédios que funcionaram conosco. Dei a ela o meu exemplar do Veríssimo e sugeri que desse a ele uma chance. Não foi amor à primeira página, mas anos depois soube que ela também o completou em um único intervalo. Logo passou para outros autores, outras obras. Verissimo salvou meu lar mais uma vez.

Por que estou lhe contando tudo isso? Bom, duas razões. A primeira é que sugeriram que eu recomendasse uma leitura para esses tempos de quarentena, e Verissimo continua sendo minha referência – mesmo depois de cursar, ironicamente, jornalismo.  A segunda é a notícia que recebi dia desses da minha irmã, que ainda mora com nosso pai: diante do confinamento forçado, ele mesmo decidiu dar uma chance a algum livro para passar o tempo, e adivinha qual foi a ideia dela? Exatamente.

É mais que interessante recomendar uma leitura a alguém, assim como são vários os benefícios que podem surgir disso. O que menos se espera (e o que mais me orgulha nessa história toda) é que, vez por outra, ao recomendar uma obra a alguém, você pode inspirar um legado.

PS. Quando digo que somos filhos de ironias da vida, não minto. Como se tudo isso não fosse o bastante, certo tempo depois descobri que o autor favorito da minha mãe é o Érico Verissimo. Pai de grandes obras da literatura brasileira e, isso mesmo, do próprio Luis Fernando.

Saibam reconhecer suas heranças.

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