Se há uma lição a ser aprendida em 2020, talvez tenha algo a ver com o conceito de deslocamentos. Mais especificamente, a reflexão acerca do que te move para lá e pra cá e, ironicamente, o que acontece quando, digamos, uma organização mundial voltada à saúde da raça humana decreta que é proibido ir para lá e pra cá. Faz você repensar por onde andava (ou não andava) e, quem sabe, para onde pretende ir de agora em diante quando as coisas voltarem a algo remotamente parecido com o “normal”.
Agora tire a ameaça biológica iminente da equação. Em se tratando de, digamos, relacionamentos, não é mais uma questão do que te move, mas quem te move. Ou então: por quem vale a pena se deslocar.
A primeira vez que pensei nisso foi entre uma das várias idas e vindas de Uber pela cidade afora. Olhando para fora com um ar de videoclipe triste, percebi o quanto estava me movimentando mais hoje em dia, comparado a qualquer outra época da minha vida. O que mudou, de fato, para me fazer desbravar tanto o mundo lá fora? Talvez a noção de que existe muito mais a ser visto, visitado e valorizado do que compreende a minha vã filosofia. Ou talvez eu simplesmente possa bancar viagens de Uber sem nenhuma dependência de cupons de desconto. Tem sido um ano estranho, porém transformador. E não só a nível biológico.
Voltando, ironicamente, ao que estou tentando dizer: deslocamentos. A incessante, inquietante, às vezes infame tendência de nos movermos do ponto A ao ponto B por algo ou alguém em especial, na esperança de que encontremos um destino diferente. Às vezes é um bar novo, às vezes, um amor inesperado. Eu não sei, sou suspeito pra dizer. Como era de se esperar, tive mais sorte com os bares.
Depois de anos mudando de cidade e algumas reviravoltas profissionais, o conceito de deslocamento não parece mais tão estrangeiro pra mim. Pelo contrário: movimentar-se parece cada vez mais necessário, independentemente de qualquer medo ou preguiça que te prenda. Pra não dizer que não falei das tais zonas de conforto, talvez a ênfase na inércia deveria ser descartada em prol de uma atenção especial à parte da “zona”. Não movimentar-se, como via de regra, parece ser uma receita para o desastre.
Basta comparar em qual versão seu celular estava quando o comprou, e em qual versão ele está agora. A vida nos empurra pra frente, nos atualiza, nos amadurece e nos revela, com ou sem o nosso aval. Movimentar-se por conta própria, olhando dessa maneira, não parece nem recomendável, mas inevitável.
Foi assim que tomei minha primeira decisão relevante aos 29: saiba bem pelo que ou por quem você se desloca. A equação nesse caso parece ainda mais simples: eu estou disposto a me mover até você desde que você faça o mesmo movimento em minha direção. O que nos traz de volta a outro conceito deveras inevitável: a reciprocidade.
Deveríamos ter aprendido isso ao sermos barrados de circular por aí só porque a menor partícula de um vírus poderia nos adoecer. Nossos movimentos passaram a ser sitiados, analisados, restringidos e até intercalados pelo bem da nossa sobrevivência. E a mesma raça disposta a tudo para vencer uma ameaça microscópica é a mesma que parece disposta a pagar um Uber para atravessar a cidade só para ver aquela garota que, convenhamos, não está tão afim de você.
Algumas ameaças merecem ser estudadas em laboratórios. Outras, pensando bem, podem ser sanadas com uma solução mais caseira: não se mova por quem não se move por você. E se estiver na dúvida quanto a isso, fique em casa.
Não é nem nunca foi normal mover-se em prol da estática alheia. Se parar pra pensar – e todos nós temos tempo e embasamento científico para isso – vale mais a pena ser recíproco consigo mesmo. Não trate como avanço da humanidade quem te trata como vírus invisível.
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