Isso vai parecer clichê, mas dois movimentos similares não podem ser meramente circunstanciais. Eu costumava viver usando preto, quase como um uniforme, porém sob a desculpa de que é a ilusão de ótica preferível por quem está fora de forma. E, convenhamos, entre todas as ilusões em que vivemos, essa pelo menos parece combinar melhor com tudo. A outra desculpa, a clichê, é subjetiva: parecia como se eu estivesse perpetuamente de luto por alguém. Não alguém que você aí chegou a conhecer – nem eu, para falar a verdade. O luto por alguém que não conheci. E que, depois de inúmeras tentativas, descobri que isso só não aconteceu porque é impossível conhecer alguém que não existe.
Não me entenda errado: amor existe. Claro que existe. É uma benção não termos o poder de prever o futuro, ou sequer teríamos coragem de levantar da cama pela manhã. Só de pensar o quão aterrorizador seria conseguir contabilizar os dias até aquele em que algo importante acontece, parece o equivalente a vivenciar um filme de terror em câmera lenta. Uma ansiedade expandida pelo tempo e espaço que, convenhamos, é algo do qual não precisamos no dia a dia. Já bastam as ansiedades tradicionais envolvendo imprimir segundas vias de boletos vencidos e a frustração infame de encaixar um pen drive no computador da maneira certa, na primeira tentativa. Entre outras dores, é claro.
O segundo movimento, aquele que realmente chamou a minha atenção, foi um abandono gradual dos tons mais escuros. O que me fez pensar que todas as cores que invadiram o meu cotidiano não podem ser acidentais tal qual o luto que as precederam. Como se aquilo em que acreditei por anos tivesse morrido sim, mas dado espaço o suficiente para que outras crenças surgissem. E com elas, novas tonalidades de vida. A dificuldade existente em abrir mão de algo é diretamente proporcional ao quão natural a vida tende a seguir em frente, com ou sem você sentir-se pronto para isso. Aceitação não é uma escolha, mas uma eventualidade. O mundo não para de girar só porque você deixou de acreditar nele, mas não leve isso para o lado pessoal.
Parece clichê, eu sei. Mas existem clichês infinitamente piores do que se dar conta de que há mais vida lá fora do que você sequer imaginava. Enquanto estava ocupado lutando contra moinhos de vento e afugentando fantasmas que nunca estiveram ali em primeiro lugar. Piores do que clichês são os estigmas nos quais nos prendemos por tanto tempo, sem perceber o quão limitados eles nos tornam. Somos destinados a viver à altura da multiplicidade do nosso ser, mas a imensidão do universo sempre foi assustadora demais para algumas pessoas – inclusive eu. Por exemplo: se eu disser que sempre fui sozinho, o que acharia disso? E digo mais: e se eu disser que você sempre foi sozinho também?
Existem linhas de pensamento deveras dramáticas quanto a isso. A própria psicologia existencial está aí para não me deixar mentir, ou Sartre certamente levantaria da sua cova para provar que estou errado e fazer com que meu ser e meu nada entrassem em colapso entre si. Ainda bem que ressurreições, assim como prever o futuro, estão fora do nosso alcance. Faça o que puder nessa vida e faça bem. O resto são cenários, coadjuvantes e trilhas sonoras.
Por que acho que sempre fui sozinho? Pela mesma razão que acredito que você também é. Porque acreditar em coisas assim – o simbolismo do preto contraposto à miríade de possibilidades que quaisquer outras cores parecem carregar, ou apenas a noção de que o amor da sua vida está mesmo por aí, perfeita e pronta para você – são crenças que tendem a ser mais individuais do que coletivas. Podemos encontrar um meio termo entre nós, com certeza, mas cada ponto de partida é único. Cada constelação de referências é única e, como é de se esperar, cada construção que fazemos em cima dessas bases será singular. Você irá atrair admiradores e críticos com o passar do tempo, mas é o seu nome que assina a obra. Tudo seu, feito por você, à sua maneira, baseado nos seus fatos reais. Somos todos sozinhos assim.
O mais recente estigma que abandonei envolve justamente uma dualidade infame sobre esse exato conceito: ser sozinho. Como se fosse algo ruim, angustiante, melancólico, desesperador e passível de fuga via qualquer rota que leve a um conforto temporário e distante dessa vida. Tudo isso sob o mesmo coro que consagra o quão essencial é dar-se um tempo para estar sozinho, em vista de alternativas ainda mais degradantes como, digamos, comprometer-se com a pessoa errada, num lugar que definitivamente não é o seu, por mais tempo do que você tem para desperdiçar de fato.
Há quem diga que somos como peças de quebra-cabeças que devem se encaixar perfeitamente, sem estresse ou desajuste, mas quem estamos enganando com isso além de nós mesmos? Somos peças inacabadas sim, mas não é o outro quem deve nos completar. Complementar... aí é outra história. Outra imagem a ser construída. Enquanto isso, admitir ser sozinho e responsável pela sua própria construção já é em si uma vitória gigantesca. O prêmio envolvido está em descobrir a partir disso o quão distintos são os conceitos de “ser sozinho” e “ser solitário”.
Assim como a aceitação, ser sozinho é uma sentença inevitável. Ser solitário, por outro lado, está totalmente em suas mãos. E mesmo nos meus piores momentos, até quando não havia ninguém à vista, eu nunca estive solitário. E digo mais: você também não. E não é porque o amor da sua vida não estava ali, mas o amor que estava não era aquele do qual você precisava naquela hora. Talvez o seu amor próprio se encaixasse melhor, por mais solitário que isso erroneamente parecesse.
Eu respeito muito o tempo em que acreditei que havia um “amor da minha vida” perdida por aí, porque foi o tempo que levei para aprender o que havia nessa vida além dela. E quando descobri tudo que havia, a falta de alguém com tamanha importância pareceu ironicamente supérflua. Como pode estar faltando algo aqui, se já tenho tudo que preciso?
Agora, alguém com quem compartilhar tudo isso... Seria deveras interessante. Alguém com quem pudesse ficar sozinho. A completa antítese da pior coisa que poderia acontecer: ser solitário ao lado de alguém. Esse é o risco que se corre ao tentar preencher uma falta sua com a presença do outro. Não somos quebra-cabeças, mas o desajuste em si é real.
E foi assim que eu descobri que usar outras cores além do preto, mesmo sozinho, é mais que permitido. Também é o melhor jeito de descobrir os outros tons de vida que você estava ignorando esse tempo todo.
Perspectiva também é uma benção.
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