Preste atenção, pois este vai ser um texto confuso. Mas eu prometo que você não precisa entender alemão ou geopolítica para saber do que estou falando.
Schadenfreude. De origem alemã, o termo resulta da junção das palavras “schaden” – que significa “dano, tristeza ou prejuízo” – e “freude” – sinônimo de alegria, prazer. Você pode nunca ter ouvido falar nisso, mas a pratica diariamente e eu posso provar.
Schadenfreude é o motivo pelo qual, por exemplo, somos atraídos à janela após ouvir o freio demasiado que antecede a batida de dois carros na esquina. Ou a razão pela qual a guerra da Ucrânia se consolidou como uma linha editorial de toda grade televisiva – do matinal jornalístico ao entretenimento noturno. E é o catalisador das reuniões informais nos cantos do escritório para sussurrar sobre como a Cíntia da Contabilidade voltou a beber após seu marido sair de casa.
Enfim, schadenfreude é o sentimento de euforia que só a falência alheia pode nos proporcionar. Analisado extensivamente por Freud e Schopenhauer, da psicologia à metafísica (e vice e versa), esse catalisador mórbido, beirando ao sadismo, é o que move as maiores fontes de distorção midiática e depressão no mundo contemporâneo: as redes sociais e seus descontentamentos. Pessoas adoram, publicitários regozijam, psicólogos fazem hora extra.
Mas onde o schadenfreude realmente brilha é no discurso do oprimido. Melhor ainda: no discurso feito sobre o sujeito oprimido determinado pela pauta du jour – a famosa, deliciosa, irresistível fofoca. Pode parecer inofensiva – afinal, quem de nós nunca sentiu vontade de comentar com outro colega sobre como o Nelson do Almoxarifado engordou, que atire a primeira pedra.
O problema é quando o schadenfreude, que já é inerente ao ser humano, se torna cada vez mais naturalizado. Ao ponto em que este não se limita mais ao inferno dos outros, como diria Sartre. Não. Schadenfreude é uma arma capaz de ser facilmente apontada para si mesmo, através do outro. O novo mal-estar da civilização – o complexo da comparação – lentamente revela seus efeitos colaterais.
Da mesma forma que pode ser divertido espiar a vida do ex, só para saber se ele ou ela estão sofrendo, o feitiço se vira contra você a partir do momento em que as provas evidenciam o contrário. E se ele, ao contrário de você, sobreviveu ao naufrágio e nunca mais olhou para trás? Só o que resta é a consciência do que foi procurado, visto, absorvido e recalcado com sucesso. Freud ficaria orgulhoso enquanto Bauman chora no banho.
É fácil se distrair pelo schadenfreude. Afinal, ele parece existir apenas sobre o outro. Mas a contrapartida desse exercício invoca um movimento subliminar: a instantânea comparação com a vida alheia. E o que acontece quando descobrirmos que o contraste coloca o outro em um tom superior ao nosso? Passamos então a encarar o doloroso reflexo do nosso pior instinto – o de supérflua superioridade – e o quão abaixo das nossas próprias expectativas tendemos a nos definir.
Assim, quem antes vibrava pelo schadenfreude, agora é martirizado pelo mesmo; fadado a conviver na mais contraditória das zonas de conforto: a melancolia. A mesma que nos impede de olhar para nós mesmos com mais carinho do que crivo, que nos censura de qualquer possibilidade de conversar com um amigo ou um terapeuta, e que nos mantém presos em uma casa de espelhos onde cada imperfeição é amplificada ao extremo.
Tentar perceber-se em uma posição superior ao outro só tende a revelar a nossa própria inferioridade moral, mas é um ciclo impiedosamente perpetuado pelas barras de rolagem infinitas que compõem cada aplicativo do seu celular – e as listras do vestido da Glória do Comercial, que voltou do seu cruzeiro de férias como quem parecer ter engolido o navio.
O quão bem você realmente se sente sobre o mal-estar do outro? E o quão bom você se julga sobre ele, como se não estivesse igualmente fadado a passar pelo mesmo, nas circunstâncias certas? É verdade que somos igualmente atraídos e repelidos por projeções de nós mesmos nos outros, só para ironicamente nos chocarmos com nosso próprio reflexo.
Por isso o schadenfreude – seja na forma de um 7x1 inesquecível, um relacionamento traumático ou um comentário aparentemente inofensivo sobre o Rubens do Jurídico – é tão viciante e perigoso ao mesmo tempo. É a curiosidade que dá luz ao nosso lado mais sombrio, e que prolongará um eclipse durante todo o tempo em que insistirmos em negar a nossa irremediável crueldade – sobre os outros e sobre nós mesmos.
Como então combater o schadenfreude nosso de cada dia? Comece por olhar a si mesmo sem o contraponto negativo do outro, e aceite as faltas e falhas que existem em você sem as distrações ou justificativas baseadas em desgraças alheias. Se há um consenso entre Freud, Schopenhauer, Sarte e Bauman, é que o inferno, a guerra, e os 5 kg a mais que enxergamos na Shirley do RH, existem primeiro em nós.
E cabe a nós admiti-los, antes que outra pessoa o faça por nós – com menos cuidado do que estamos prontos para receber.
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