Treze anos atrás, eu disse que quando dói a ponto de morrer, você sobrevive. Quod erat demonstratum.
Na primeira temporada da pandemia, nenhum de nós imaginou, pra início de conversa, que seria uma “primeira temporada”. Olhando em retrospectiva, após algumas renovações involuntárias e variantes incessantes, parecer ser cada vez mais cômodo acreditar que nada será como antes. A questão é: nada nunca foi, muito antes do colapso de 2020.
Agora, o porquê nos apegamos aos desastres naturais externos mais do que às armas de autodestruição que estamos habituados a detonar em nós mesmos, eu ainda não sei. Talvez pela cobertura jornalística envolvida. Tudo soa mais urgente acompanhado pela vinheta do Plantão da Globo. Mas nenhuma redação pode viver em torno dos desgastes e destroços emocionais, tentando emitir algum alerta a partir deles.
Não, espere. Essa aqui pode.
Se estamos prestes a encerrar esse capítulo obscuro da nossa história, seria importante ressaltar os piores momentos – a fim de, no mínimo, não repeti-los. E nenhum trecho se destacou tanto naqueles primeiros dias quanto a infame declaração de independência intransigente de Gabriela Pugliesi. “F*da-se a vida”, ela bradou, em meio ao que era considerada uma aglomeração clandestina durante um estado de emergência nacional.
Não me leve a mal: alguns “f*da-se” são necessários ao longo da vida. Vez por outra, no entanto, um “vai que...” pode ser mais importante.
A questão aqui não é a tragédia embutida no discurso, ou a demagogia que cercou a pauta. O que eu quero dizer, dois anos depois desse episódio em particular – e treze anos de vários outros posts – é que todo “f*da-se” obrigatoriamente envolve uma parcela de responsabilidade, por mais contraditório que pareça.
Gritar bêbado “f*da-se a vida” em uma rave é procedimento padrão. Agora, “f*da-se a vida” em meio a uma calamidade de saúde pública, é o cúmulo do desrespeito. Mas muito já foi dito sobre a Gabriela – e talvez a própria vida tenha feito por onde ao f*de-la também. O que faremos após dois anos f*da é a verdadeira equação a ser resolvida.
Repensando sobre a questão do “f*da-se”, lembrei não só da Gabriela, como de todas as vezes em que eu mesmo declarei um estado de “f*da-se” sobre algo ou alguém, só para ser desmascarado depois. É fácil declarar “f*da-se” a alguém, sob a noção de que não sentimos nada por ela, ou a algum lugar, crendo que jamais colocaremos nossos pés lá de novo. Mas é da natureza da vida assumir todo e qualquer “f*da-se” como um desafio e não só assumir o truco, como pedir 6 em cima e deixar as fichas rolarem soltas.
Como há treze anos, quando uma determinada decepção – no auge dos meus dezessete – me fez pensar que nada poderia doer tanto quanto aquilo. Me fez sentir como se parte de mim tivesse morrido, e algum sonho de redenção eventualmente se inspiraria naquela tragédia para me levar adiante de alguma forma. Porque sentir-se acabado e cessar de existir de fato não são distinções claras de serem feitas no auge dos dezessete. Porém, na ressaca dos trinta, esse tipo de coisa só faz nossa cabeça doer ainda mais. Troco qualquer dose de drama por uma de fluoxetina, somada a um minuto de silêncio se possível.
Aos trinta você silenciosamente incorpora a filosofia do “f*da-se” sem precisar estender nenhum release à imprensa. Seu olhar já o entrega – do foco genuíno em coisas mais relevantes, como carreira e autocuidado, ao cansaço que esse esforço gera, mas que também o torna melhor por isso. Claro, isso não é uma regra geral, e os trinta e poucos da Gabriela reforçam essa mensagem.
A diferença entre uma vida “f*da” e uma vida “f*da-se”, enfim, não se trata de maturidade, mas do quanto você já conseguiu tirar dela depois que ela tirou tudo de você. Sempre foi sobre resiliência, não aniversários. Os trinta são só uma escala injusta na qual nos norteamos para fixar um deadline para os nossos sonhos e nossa irresponsabilidade. Alguns se adiantam ao prazo, outros seguem alheios ao atraso.
E é aqui que o “vai que...” se revela como a melhor alternativa. Quando se assume um “f*da-se”, você também assume as responsabilidades de não ater-se a responsabilidade alguma. Tentar ser neutro é e sempre foi um posicionamento, assim como não emitir uma resposta também constitui uma resposta em si. O “f*da-se”, como estado de espírito, é a expressão mor do estoicismo. Como declaração pública, é uma afronta. Nem todos estão prontos para lidar com a sua falta de comprometimento.
O “vai que...”, por sua vez, é um substituto passivo do “f*da-se”. Mais otimista e menos agressivo, e por isso mesmo é tão menos empregado do que um “f*da-se” bem-mandado. Enquanto o “f*da-se” questiona o “por que?” das coisas, o “vai que...” concede o “por que não?”. Numa escala gráfica, do auge dos dezessete à ressaca dos trinta, nossa cabeça é muito mais “f*da-se” enquanto nossas ações ecoam o “vai que...”, até exibir o movimento contrário com o passar dos anos.
Todo “vai que...” é um sonho que se arrasta por décadas até ser exilado em um arquivo morto da memória. Restam apenas o “f*da-se” e um leve senso de ressentimento próprio por não ter levado um “vai que...” adiante. Seria o jeito mais esperançoso de levar a vida, se já não a levássemos com tanto cansaço.
De todos os “f*da-se” que podem ser ditos sobre a vida, o pior é aquele que declaramos a nós mesmos. Dos mais impensados e insensíveis, nível Pugliesi, aos mais impiedosos e inquietantes, motivados pelo burnout dos trinta e poucos. Cada “f*da-se” esconde um “vai que...”, assim como todo excesso camufla uma falta e todo ressentimento sublima uma saudade. Você pensa que aprendeu a dominar o “f*da-se” só para perceber o quão sensível ele é quando se depara com uma dose de nostalgia – a única substância mais potente que a fluoxetina.
E então você percebe que nunca domou nenhum “f*da-se” na vida, mas como foi fácil ser submetido por ele à indiferença, ao descaso e ao descuido de si mesmo. Diante de tamanha ironia, não é à toa que todo “vai que...” foi adiado indefinitivamente. Nunca “foi que”, e nós somos os responsáveis por isso.
Nada será como antes: é fato, e isso é bom. Significa que, neste admirável mundo novo, podemos ser melhores do que antes. Menos “f*da-se” uns com os outros e, principalmente, mais “vai que...” com nós mesmos. Mas isso só é possível se você mesmo conseguir identificar seus padrões e, quem sabe, reconhecer suas vontades perdidas. Aquelas que você achou que seriam silenciadas por um “f*da-se”, só para ser pego de surpresa por seu próprio coração antes de dormir. Estamos voltando ao normal, ou à melhor linha do tempo possível em meio ao tal multiverso. As máscaras começaram a cair e nós ainda estamos aqui. Ganhamos uma segunda chance na vida. Quem seremos agora?
Chega de “f*da-se”. Eu sei que existe um “vai que...” escondido no seu bolso, no fundo da sua gaveta, ou salvo no seu celular. Quer saber se ele ainda vale a pena? Primeiro admita a existência do seu “vai que...” e o deixe respirar. Se fizer você suspirar em troca, então ambos ainda estão vivos.
Agora vá atrás dele.
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