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Você nunca esteve aqui


Quando dizem que seu passado te condena, talvez estejam exagerando. Não necessariamente porque a vida que assombra o retrovisor eventualmente não irá te alcançar. Ironicamente, vai além disso. Talvez signifique algo muito mais simples do que os nossos piores medos. Talvez, em um dia qualquer, ao olharmos distraídos para trás e percebermos o quão longe já chegamos, é possível que sequer reconheçamos quem viemos a nos tornar. Pior ainda: alguns sonhos e promessas dos quais jurávamos nunca nos desfazermos podem, vez por outra, terem escapado das nossas mãos ao longo do caminho. Enfim, a hipocrisia: você sequer sentiu falta deles.


Também não chega a ser algo digno de um luto, em vista do quão natural tudo parece ter acontecido. Dos mais humildes entre nós até aqueles dotados de um distorcido complexo de Júlio Cesar – olhando tudo ao seu redor e declarando que “vim, vi, venci” – nossos impérios e nossos domínio sobre eles muda com o tempo. E já falamos sobre isso por aqui: mudança, na falta de uma palavra melhor, é boa.


Mas o que quero dizer pouco tem a ver com o domínio de grandes impérios, salvo a necessidade impetuosa de manter um mundo sob controle – ainda que o meu próprio, introspectivamente. Foi num dia qualquer, em um momento de distração flutuante, em que me peguei imaginando o que haveria além do horizonte, no dia de amanhã, na vida após a morte de mais um pôr-do-sol, quando percebi que nada do que veio a cruzar a minha mente estava remotamente associado à sua imagem. 


E não foi como antes, quando parei para procurar por todos os lados e percebi que você não estava ali. Tampouco foi dramático a ponto de pensar que sequer poderia voltar a estar. Nada disso. Eu só não senti a sua falta. Como se você nunca tivesse feito parte de algo aqui. O que, convenhamos, não deixa de ser verdade.


Nós temos um impulso inevitável de projetar nas pessoas aquilo que queremos ver, antes de realmente enxergarmos quem são. O que esperamos dos outros inevitavelmente se sobrepõe às suas verdadeiras vontades, crenças, gostos, desgostos e – como sempre acabamos por descobrir – limites. E foi esse mesmo padrão que repeti com você: aquela que nunca conheci. Aquela cujo nome permanece impronunciável. Aquela cujo endereço tende a ser inalcançável. Aquela que procurei em todas as mulheres que já conheci nesta vida, e não encontrei. E o motivo é simples: você não existe. Mas as mulheres por trás do que eu imaginava ser você, sim. E ninguém além de mim saberá a verdadeira extensão do quanto eu sinto muito por isso.


A única coisa que faz com que eu sinta algo similar a alívio por isso é que, convenhamos, você também nunca me conheceu. O que passa a ser mais filosófico do que o preferível a essa altura da vida: somos mesmo quem somos? E se somos, conseguimos expressar na íntegra tudo que somos a alguém? E se por acaso tivéssemos sucesso na transmissão da mensagem, outra pessoa saberia compreendê-la no mesmo sentido, tom e intenção? 


Somos todos reféns de interpretação de texto, no final das contas; por isso a chamam de matéria a nível fundamental. Em se tratando de um escritor, por exemplo, uma vírgula é capaz de mudar tudo. Ou talvez isso não seja verdade somente às palavras literais que produzimos. Quantos pontos finais já foram disfarçados de vírgulas na sua vida? E vice-e-versa, é claro.


No meu caso em particular, não é preciso ir muito longe para expor a discrepância dos meus pontos finais. Por bem ou por mal, uma porta parece sempre permanecer entreaberta entre meus capítulos anteriores e eu, para que ambos possamos nos revisitarmos a cada momento de fraqueza nostálgica. Refletindo sobre a vida que não escrevemos. Revendo o caminho que não trilhamos, sem chance de retorno ou nova entrada à diante que leve ao seu destino. 


Dependendo da sua consciência, o passado não condena nem assombra. Pode ser apenas um lembrete constante de quem você costumava ser, as coisas nas quais acreditou um dia, e outras pelas quais esperava ansiosamente encontrar mais à frente. Se encontrou ou não, e de que forma você interpretou isso para si, é o que conta agora. Tudo que sabemos com certeza é que nossas escolhas, salvo exceções, não são passíveis de condenação por ninguém a não ser nós mesmos. E fantasmas, independentemente do que você pensa que viu no retrovisor, não existem. 


Você, por falta de uma conclusão melhor no momento, não existe. Só o que existem são as minhas projeções de você sob outras que, se eu pudesse dar uma mínima chance, ganhariam vida aos meus olhos. O que viria disso, claro, é sempre um próximo capítulo a ser escrito.


Com uma mão, o passado nos empurra adiante. Com outra, ele nos segura. Quem decide qual mão soltar, e para onde ir, é você.


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