Foi entre sua primeira e segunda esposa que Vinicius de Moraes escreveu o que considero ser sua verdadeira magnum opus: o Soneto de Fidelidade, em 1939. Nesse contexto isolado é fácil entender como tamanha poesia poderia vir a ser eternizada no papel: um dos poetas mais famosos do país, no auge do seu primeiro matrimônio, recém jurado amar e respeitar na alegria e na tristeza até que a morte os separasse, colocou em estrofes seus votos mais sinceros como forma de protegê-los das atrocidades do tempo.
É o mesmo movimento, creio eu, que o inspirou a escrever outra grande relíquia da antologia poética brasileira: o Soneto de Separação, em 1974, entre seu sétimo e oitavo casamento. Caso isso te surpreenda tanto quanto surpreendeu a mim, trago aqui a informação: ele se casou nove vezes ao longo dos seus 66 anos. Nove. O que me faz pensar que a primeira e a última linha dos seus dois sonetos mais famosos realmente conversavam entre si:
“De tudo ao meu amor serei atento [...] mas que seja infinito enquanto dure.” – “Soneto de Fidelidade”, Poemas, Sonetos e Baladas (1946)
“De repente do riso fez-se o pranto [...] de repente, não mais que de repente.” – “Soneto de Separação”, Poesia Completa e Prosa (1974)
Nove vezes é relativamente inferior ao número de vezes em que eu mesmo citei as obras de Vinicius ao longo dos meus 29 anos, mas é assustadoramente superior ao número de vezes em que eu mesmo pretendo assumir esse compromisso. Uma vez bem feita bastaria para dar à minha vida o sentido adicional que procuro – além de, claro, inspirar outras prosas descartáveis pelas quais me tornei famoso ao longo desses mesmos anos. Não notório, apenas referenciado pelas mesmas (por enquanto).
Salvo minha surpresa momentânea, eu eventualmente consegui entender o que levou Vinicius a continuar sua procura por alguém especial, mesmo em meio a ditaduras, revoluções, crises e demais eventos catastróficos ao seu redor: a necessidade de encontrar amor entre as ruínas para continuar. Ao escrever Fidelidade, eu creio piamente que foi sincero em cada verso, ainda que afundando-se em eufemismos efêmeros como “para sempre” ou “infinito”. Por motivos que jamais saberemos ou sequer entenderemos por completo, Vinicius descobriu que amor às vezes não é o bastante, mas é tudo que importa enquanto ele existe.
O que me levou a interpretar de um jeito diferente sua obra posterior, Separação. Mesmo entre tantas juras de amor, páginas e páginas de votos e promessas, superando desastres naturais e um coup d’etat em sua própria nação que colocou em risco a possibilidade de sequer dar vida a palavras, Vinicius perseverou. Nada quebrou por completo o poeta que vivia naquele homem, tampouco o impediu de continuar a procura por aquela que viria a ser sua última esposa, dois anos antes de sucumbir a um edema pulmonar, mas nunca a um coração partido.
No auge dos 29 anos, eu não sei dizer o que irá acontecer comigo. Certamente não desejo assinar nove certidões de casamento ao longo dos próximos 40 anos, mas ao julgar pelos meus antepassados da literatura e pelas páginas e páginas que eu mesmo já dediquei à causa, a verdade é que, em se tratando de amor, estamos todos suscetíveis ao infinito (enquanto ele durar) e aos momentos definitivos que se apresentam de repente, não mais que de repente.
Vinicius nunca desistiu, assim como eu aparentemente sigo firme. E tal qual o poeta encontrou seu lugar na história como um dos grandes tesouros literários desse país, eis uma honra pela qual eu não necessariamente aspiro, visto que existem coisas mais importantes a serem alcançadas ao longo da vida. Talvez meu livro ganhe vida um dia, ou quem sabe venha a ser uma coletânea, uma antologia prosaica ou um best-seller de auto-ajuda sobre como vencer na vida a partir de uma crônica (e uma trilha sonora) de cada vez.
Assim como eu jamais esperava continuar vivendo à procura de alguém e escrevendo sobre isso há mais de uma década, eu entendo melhor agora o que pode ter se passado na cabeça e no coração de Vinicius. Ainda mais se considerarmos que, em vista do legado que deixou, Vinicius nunca realmente partiu. Ao menos não enquanto pessoas como você e eu, que prometemos jamais deixar o mundo real vencer, continuarmos a levá-lo adiante.
Poesia nada mais é do que as aspirações mais inconcebíveis de um autor, enquanto um autor nada mais é do que um homem dedicado a fazer da sua existência algo mais duradouro do que títulos, troféus e transgressões que acumulou ao longo da vida. Vão-se os anéis, ficam os dedos – provavelmente a escrever.
Não me entenda errado: casar nove vezes continua sendo um absurdo. Mas é compreensível e esperado perdoar os extremos de um poeta. Se não fosse por eles, não haveria nada a ser lido. E amor, como é sempre de se esperar, só ganha mesmo vida nos extremos. Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na prosa e na poesia, até que a morte nos separe.
Inspirador mesmo é ter a coragem e a resiliência de um poeta. Que seja eterno enquanto dure: de repente, não mais que de repente...
OBS: Pra não dizer que não falei da história:
- O soneto da fidelidade (parte 1) (04/02/14)
- O soneto da fidelidade (parte 2) (06/02/14)
- O soneto da separação (18/07/15)
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