Se
eu disser que tirei a ideia de começar a escrever de algum lugar, teria
dizer que foi da minha mãe. De vez em quando nossa casa era tomada por um
silêncio estranho - e digo estranho porque passei grande parte da infância
sendo constantemente interrogado por ela aos gritos: Filhoooo, que tá fazendo? Nada, mãe. Tá muito quetooo! Sou quieto, mãe. Não é nãaaao! Vem aqui fazer companhia pra mamãeeee! Sempre havia
alguém gritando dentro de casa, mas num bom sentido. Por isso silêncios eram
estranhos, salvas as vezes em que já estávamos reunidos em algum cômodo,
hipnotizados pela inércia da televisão. Por isso silêncios eram estranhos. Mas
em vês de gritar Mãeeee, que tá
fazendooo? eu optava por ir até a sala e ver por mim mesmo qual era o
motivo daquela calmaria. Mamãe morreu? Não, mamãe estava sentada à mesa, com um
caderno de rascunho em mãos, escrevendo algo. O que é isso aí, mãe? É um dos poemas favoritos da mamãe, filho.
Como se chama? "Soneto da
Fidelidade" de Vinicius de Moraes. Você vai ouvir falar muito dele na
escola. Nota 1: quando me refiro à
mamãe como "mamãe", é
porque estou me referindo aqui ao tempo dos meus 10 ou 11 anos. Eu não chamo
mais mamãe assim. Só quando ela manda.
Do que se trata esse poema, mamãe? É uma declaração de amor, filho. Uma das
declarações de amor mais bem escritas que já se viu. Minha mãe era fã do
Vinicius; tanto que sabia de cor aquele poema, de cor e de coração. Este e
outros poemas eram apenas parte da coletânea que ela havia reescrito naquele
caderno. Inspirado por isso, tentei fazer o mesmo, nem que fosse só para
descobrir se minha memória era boa o bastante para recordar de quatro estrofes
consecutivas sem esquecer de nenhuma vírgula ou lamúria. Não era. E até hoje,
permaneço com apenas as molduras do poema em minha mente distorcida - a
primeira e a última linha - que, de alguma forma, faziam sentido para mim sem o
corpo do texto. “De tudo ao meu amor
serei atento [...] mas que seja infinito enquanto dure." Mal sabíamos
eu e a minha mãe que aquele momento viria a se tornar o marco zero de uma das
características mais marcantes e questionáveis da minha personalidade futura: a
atração por declarações de amor, e o desconhecimento do que acontece entre o
começo e o fim de um amor - independente se estiver na forma de poemas ou
pessoas.
Eu me sinto consideravelmente
criativo em se tratando dos começos as histórias de amor que já vivi. Os
ambientes inusitados, os personagens cativantes, o contexto impensável. À
primeira vista parece até que nada daquilo tem sentido quando colocado tudo
junto e misturado, mas teve. Foi assim com a Fulana, com a Ciclana, com a Beltrana
e com a - digamos - Amélia. Mas como
diria Saint-Exupéry, era tudo muito bonito, muito poético, mas sem muita
utilidade. Porque assim como meus começos eram dignos de refilmagens de contos
da Disney, meus fins eram igualmente épicos em matéria de tragicomédia. Trágico
porque era o fim de um amor, mas cômico porque ainda se tratava de mim. E não
importa aonde eu vá, o constrangimento, a ironia e - como se provou
recentemente - acidentes estranhos envolvendo telhas voadoras sempre me
seguirão. Logo, não era pra ninguém se surpreender que quando meus romances
terminam (já não é mais uma questão de "se", mas de "quando"
mesmo) , pode ter certeza que terei mais uma boa história pra contar na mesa do
bar. Como quando a Fulana se mudou pra Florianópolis, a Ciclana voltou pro ex,
a Beltrana acabou sendo louca, e a - digamos - Amélia decidiu que nosso amor sequer tinha existido.
Aconteceu que eu me lembrei de tudo
isso - da mamãe, dos gritos em casa, do soneto da fidelidade, dos romances
épicos propensos ao óbito - por causa mesmo da Amélia. Porque dia desses, já passados meses desde o funeral do
nosso relacionamento, a Amélia resolveu
reaparecer. Porque antes disso, eu havia tentado uma reconciliação hipotética
com a Amélia, e digo hipotética
porque me agarro sagradamente no uso contínuo das palavras "se" e não "quando" durante nosso diálogo. Se nós estivéssemos juntos, ao contrário
de Quando nós estivermos juntos de novo
possui grande diferença de argumentos quando for apresentar seu caso ao
tribunal de apelações de relacionamentos fracassados. Ou quando for explicar
aos seus amigos o que aconteceu depois que você chegar no bar estressado e
jurando nunca mais amar de novo.
Enfim, quando eu procurei a Amélia de novo, ela não quis saber de
mim. E foi tão cruel e vingativa quanto só uma mulher cruel e vingativa sabe
ser. Nota 2: não entenda, sob nenhuma circunstância,
que eu esteja em algum momento julgando a atitude impiedosa de Amélia. Dada a minha participação no
enterro da nossa cumplicidade, achei a reação dela não só justificável como
bastante nobre também. Mulheres ainda mais impiedosas não responderiam a nenhum
apelo. Mulheres ainda mais impiedosas responderiam a isso com um fósforo,
gasolina e um bom álibi para confirmar aonde estavam quando o incêndio no meu
apartamento começou. Tudo bem. Três meses depois, ali estava ela. Sua janela de
conversação apareceu na minha tela com a mesma naturalidade que costumava
aparecer durante todos os dias em que ainda gostávamos um do outro. E me disse
um "Olá Igor" que era tudo,
menos natural.
Continua...
Encantador!
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