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A girafa e o chacal


Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal. Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal. 

De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos. 

Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ao seu redor como pertinente ou não à sua existência. O contraste entre os animais empresta à Marshall, enfim, sua mensagem figurada: de que forma você se comunica com os outros? Agressiva e compulsoriamente, ou usando o coração para olhar além de si? Seria uma fábula perfeita, salvo pela premissa acadêmica. 

Vez por outra, sou chamado a atenção pelo meu mau comportamento. Pelos comentários sarcásticos fora de hora, ou, ainda, por minhas respostas rudimentares imediatas a comandos oportunos. Para a surpresa de ninguém, o “não” é minha configuração padrão para toda e qualquer circunstância alheia à minha sobrevivência. Talvez seja o mau humor que antecede a consolidação dos trinta anos, mas se eu não precisar de fato estar em determinado lugar, ou fazer determinada coisa, evidentemente não irei me mover. É a primeira lei da física emocional: um corpo sem obrigações tende a continuar em repouso. Se a inércia ainda não se tornou sua melhor amiga, você não é um adulto.

Não obstante, eu costumo refletir sobre minhas atitudes negativas perante a vida – ou, especificamente, sobre como elas invariavelmente me mantém numa perpétua zona de desconforto. Ao contrário dos cenários permitidos a uma girafa de cabeça aberta, um chacal vive por baixo, sem tempo para conversa fiada ou compaixão. O reino animal como um todo parece ser regido por uma ordem maquiavélica – os fins justificam os meios, em se tratando da sua próxima refeição. Mas somos seres humanos, agraciados com um lugar paralelo à cadeia alimentar, onde não precisamos nos matar para estar acima da carne seca. Pelo contrário: somos seres racionais... Não somos?

Apesar da minha altura, eu gostaria de ser uma pessoa melhor e ver além do que consigo. Embora pense que saiba ver além das minhas próprias necessidades, há um botão de pânico sempre ao alcance, apenas esperando pela próxima calamidade. Um instinto de sobrevivência deturpado parece motivar minhas empreitadas pela selva urbana, ora tentando me sobressair no trabalho, ora forçando minha capacidade física para provar a mim mesmo que ainda estou no auge da vitalidade. 

Apesar dos pesares, gosto de pensar que consegui domesticar alguns dos meus piores instintos, ao longo desses anos solto na natureza. Entre acertos e erros, piadas infames e textos sarcásticos, eu ainda prefiro a experiência selvagem em vez de uma vida em cativeiro. Afinal, o que a girafa e o chacal têm em comum? Eles são livres. Só preciso controlar meus piores impulsos, pois nem mesmo o mais afiado dos reflexos passa impune pela seleção natural. 

É uma selva lá fora, figurativamente falando. Aja de acordo, mas pense no outro. Literalmente.

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