Pular para o conteúdo principal

Gente normal e civilizada

Nada pode ser considerado um teste mais eficaz para a capacidade humana, ou a falta dela, sobre como conviver em sociedade como uma boa fila de banco, daquelas típicas segunda-feira após o dia do pagamento onde o primeiro a chegar encontra mesmo uma das maiores formas de felicidade possíveis, enquanto o último encontra seu inferno particular em questão de minutos, às vezes horas, e passa a descobrir o seu melhor e o seu pior a medida que se aproxima passo a passo do tão esperado caixa, e da sua vez de atendimento. Mas claro, às vezes pode demorar um pouco…

- Droga!

- Tudo bem, companheiro?

- Eu jurava que a essa hora não haveria fila...

- Ih, nem se engane com isto, esqueceu de que dia é hoje?

- Ah, claro... Mas é que, com tanta coisa que ainda tenho para fazer hoje, realmente não poderia perder tempo nesta fila...

- O que podemos fazer, não é? O negócio é esperar.

- É, realmente, isso acontece. Aliás, não é o tipo de coisa tão demorada, né? Só vai levar alguns minutos...

(10 minutos depois)

- Ei...

- Sim?

- Está prestando atenção naquilo?

- Desculpe, estava olhando para o relógio. O que?

- Não está vendo que aquele cara está enrolando com a vez dele?

- Como assim?

- Ele fica repetindo tudo que a caixa diz. Quer dizer, ele faz uma pergunta, ela responde, e ele repete a pergunta! É tão difícil assim pagar uma conta?

- É, nem me fale, odeio esses tipos. Atrasam tudo e a todos nós.

- Gente sem consideração, né?

- Gente sem consideração?

- É, essas pessoinhas que ficam atrasando todo mundo, sendo que estamos aqui com nossos compromissos a mercê da... da... da estupidez alheia mesmo!

- Calma, cara. Falando assim, não me leve a mal, parece até que você se sente superior. Quer dizer, todos temos nossos compromissos.

- Eu sei, eu sei. Mas o que eu quis dizer é que, veja eu e você por exemplo, estamos aqui, aguardando nossa vez para ser atendidos, já com a fatura e o dinheiro em mãos...

- E?

- E é isso que nos diferencia dessa gente! Parece até que não se lembram de que vivemos em sociedade!

- O que viver em sociedade tem a ver com o dinheiro separado?

- Não entende? Estar com o dinheiro separado mostra que somos práticos, eficazes, prontos para sermos atendidos e agilizar a vez do próximo. Isso, mostra que nos importamos com o próximo!

- Ah, acho que entendi... Mas não se preocupe, ele parece que já está terminando, logo chega a nossa vez...

(30 minutos depois)

- Ei, cara...

- Oi?

- Acho que você tem razão...

- Desculpe, eu meio que cochilei aqui. Como assim?

- Não viu aquela senhora?!

- Que senhora?

- Aquela senhora! Chegou ao caixa com mil contas, e depois da caixa lerda passar dias para efetuar o pagamento, a velha despejou dez mil reais em moedas no balcão e ainda não terminaram de contar!

- Odeio quando isso acontece. Pense comigo; existem quatro caixas, mais o preferencial. A esta hora, todos os caixas deveriam estar funcionando. Mas o que eles fazem? Deixam só uma caixa lerda para fazer o serviço dessa gente toda, e além de ser lerda, ainda dá atendimento preferencial!

- Cá entre nós, uma das vantagens de ser velho deve ser essa. Cortar a frente de todo mundo e ir direto para o fim da fila. Isso e pegar o ônibus de graça, claro...

- Mas sabe o que é? Essas contas nem devem ser dela. Olhe só pra ela, acha mesmo que ela gastaria tanto assim? Isso é a mãe, a neta, o porteiro do prédio que dão as contas pra ela pagar e a mandam pro banco, pra evitar a fila!

- Cara, minha mulher faz exatamente isso. Manda a mãe dela de 75 anos pro banco enquanto ela espera no carro, e é sempre questão de 5 minutos. Ela me disse que nem dá tempo de sentir calor dentro do carro!

- Viu, eu falei...

- Mas eu acho mesmo uma falta de consideração. Vivemos em sociedade, não é? Então o que gente normal e civilizada deveria fazer, é estar aqui suando, batalhando em pé, sem nem direito a água gelada ou cafezinho quente, com a fatura em mãos e o dinheiro contado, sem nada pra fazer a não ser olhar pro relógio e não tentar pensar que essa caixa deve estar mesmo querendo briga!

- Calma, cara...

- Não, não, agora me enfezei. Que bosta de banco é esse que deixa só uma caixa em atendimento pra toda essa gente?!

- Cara, as pessoas estão ouvindo...

- Eu não ligo, devem mesmo é ouvir! Acham que não tenho compromisso?! Acham que estou me divertindo aqui?! Depois meu chefe me chama na sala dele pra perguntar porque passei tanto tempo de expediente fora do escritório, e ainda tenho que ouvir que preciso mostrar mais resultados!

- Cara, o segurança da porta está te encarando...

- Deixe encarar! Está pensando o que?! Cadê os nossos direitos?! Nem um cafezinho, nem um cafezinho!

***

- E ai, cara, está melhor?

- Sim, sim... Eles me deram um tranquilizante, deve durar por algumas horas. Daqui vou direto pra casa, o chefe disse que ando meio estressado...

- Mas quem é que não fica estressado com uma fila dessas, não é?

- O que está fazendo?

- Jogando aquele joguinho de celular, o da cobrinha, sabe?

- Não sou muito bom nesse jogo. Está ganhando?

- Eu também não era muito bom, mas tive tempo de aprender já que aquela senhora ainda está ali. Já tenho cinquenta e três mil pontos...

- Como assim, aquela senhora ainda está ali...?

- Pois é, pelo visto a sua gritaria fez ela desmaiar e só agora ela acordou. E como o atendimento é preferencial...

- NAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOO!!!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os 5 estágios do Roacutan

            Olá. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sou um alcoólatra. Muito pelo contrário, sou um apreciador, um namorador, um profissional em se tratando de bebidas. Sem preconceito, horário ou frescura com absolutamente nenhuma delas, acredito que existe sim o paraíso, e acredito que o harém particular que está reservado para mim certamente tem open bar. Já tive bebidas de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, assim como todas as ressacas que eram possíveis de se tirar delas. Mas todo esse amor, essa dedicação e essas dores de cabeça há muito deixaram de fazer parte do meu dia a dia, tudo por uma causa maior. Até mesmo maior do que churrascos de aniversário, camarotes com bebida liberada e brindes à meia noite depois de um dia difícil. Maior do que o meu gosto pelos drinques, coquetéis e chopes, eu optei por mergulhar de cabeça numa tentativa de aprimorar a mim mesmo, em vês de continuar me afogando na mesmisse da minha melancolia existencial.            

A girafa e o chacal

Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal . Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal.  De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos.  Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ao seu re

Wile E.: o gênio, o mito, o coiote

Aí todo mundo no Facebook mudou o avatar para a imagem de algum desenho e eu não consegui achar mais ninguém, mas depois de um tempo eu resolvi brincar também. O clima de celebração do dia das crianças invadiu as redes sociais de tal maneira que todos nós acabamos tendo vários flashbacks com os desenhos de nossos colegas, dos programas que costumávamos assistir anos atrás quando éramos crianças e decorar o nome dos 150 pokemons era nosso único dever. E para ficar mais interativo, cada um mudou a imagem para um desenho com qual mais se identifica, e quando a minha vez chegou, não tive dúvidas para escolher nenhum outro senão meu ídolo de ontem, de hoje, e de sempre: o senhor Wile E. Coiote. Criado em 1948 como mais um integrante da família Looney Tunes, Wile foi imortalizado pelo apelido e pela fama de fracassado em sua meta de vida: pegar o Papa Léguas. Através de seu suposto intelecto superior e um acesso ilimitado ao arsenal de arapucas fornecidas pela companhia ACME, Wile tento