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A tempestade perfeita


   Hoje eu decidi escrever sobre o glorioso e marcante fato de não ter tomado chuva. Aos desavisados sobre a minha natureza neurótica, melancólica e metafórica, abandonem este post já! Porque, crianças, como você já conhecem bem o costume, esta não é a história da vez em que eu saí de casa no meio de uma tempestade, e não tomei chuva. Claro que não. Esta é uma história de como a vida nem sempre vai ser do jeito que a gente quer, e nem do jeito que a gente se acostuma que é também. Como assim? Eu vou explicar...
   Porque eu tenho essa natureza neurótica, melancólica e metafórica que transforma toda e qualquer situação em que eu arrisque encostar a minha fútil e infame existência em algo que a simboliza como um todo, mesmo que seja só parte de nada. E eu tenho essa natureza neurótica, melancólica e metafórica que vos escreve porque, de um jeito ou de outro, foi assim que a vida me modelou. Existencialistas dirão que é uma mistura de inautenticidade com ma fé descarada. Psicanalistas dirão que é culpa da minha mãe. Comportamentalistas entenderão. Leigos não entenderão nada. Mas tudo bem.
   A questão é que eu tenho uma nuvem negra, um azar recorrente, uma zoeira sem limites que rege a minha vida desde quando consigo me lembrar que queria que algo desse certo... E não deu. Era sempre a pessoa errada, na hora errada, no lugar errado, fazendo o trabalho errado, do jeito errado, apaixonado por outra pessoa errada, que já tinha rolo com um cara que ela pensava ser o cara certo. Tanto é, que é assim que as minhas histórias costumam acabar, especialmente em 2014: desempregado, adiantado ou atrasado demais, perdido, cansado, irritado pela teimosia, com o coração partido pela Fulana, e voltando para casa debaixo da chuva. Porque só existe um fenômeno que se compara à nuvem negra que paira sobre mim: os ventos fortes que ela traz, e que sempre acabam quebrando os meus guarda-chuvas no meio da rua. Guarda-chuvas, pra ser mais exato. Sete guarda-chuvas nos últimos cinco anos, para ser mais amargamente exato. O que me fez pensar, inclusive, que Cascavel está tentando me dizer algo. Mas Cascavel não possui a mesma ironia fina que o universo possui. Não. Cascavel está deliberadamente me mandando embora. E causará outro grande dilúvio para me extinguir, se precisar. Ok, desta vez até eu admito que é exagero.
   Mas aí algo aconteceu. Ou melhor, algo não aconteceu. Mas ao contrário do meu momento Amy Winehouse que não aconteceu semana passada, desta vez não aconteceu algo ruim. Porque hoje Cascavel amanheceu com aquela vontade sádica de sacanear o pessoal singelo, honesto e trabalhador que acorda cedo para enfrentar o frio impiedoso e o vento forte lá fora, e fez chover em cima dessa gente igual criança serelepe que queima formigas usando a lupa que pegou escondido do pai e o calor infernal do sol.  Só que com água. Muita água. Enfim, choveu demais. Era o prelúdio do dilúvio. O epílogo do fim. E teria sido mesmo mais um dia de mau humor, sarcasmo assassino e meias angustiantemente molhadas dentro do tênis, se não fosse por um detalhe: estar desempregado me possibilitou alguns poucos benefícios ultimamente, como ir ao cinema em plena quarta-feira e, por que não?, acordar tarde na quinta. Meus sinceros votos de dias melhores e secos para você que saiu cedo hoje, mas não sinto muito por não estar entre vocês. Porque depois de cinco anos, sete guarda-chuvas e inúmeras nuvens negras, eu finalmente me percebi no lugar certo, na hora certa, fazendo a coisa certa, com o coração em paz: dormindo alucinadamente manhã afora no oasis de paz e sossego que é a minha cama. Recheada com quatro cobertores, porque ninguém no inverno se atreve a dormir sem se fantasiar de rocambole de mantas. Era a tempestade perfeita, porque pela primeira vez eu estava fora dela.
   E é claro que não ter tomado chuva hoje me fez usar isso como uma metáfora para o resto do universo. Do meu universo. E de como a minha natureza neurótica, melancólica e metafórica na verdade é culpa minha. Existencialistas dirão que o termo correto é “responsabilidade”. Psicanalistas insistirão que a culpa é da minha mãe. Comportamentalistas irão querer debater esta tese mais afundo. Desta vez fico com os leigos, que vivem alheios a toda a psicologia que sua existência possui sobre o mundo, e que o mundo impõe sobre eles. A partir do momento em que eu parar de esperar que a vida seja do jeito que eu sempre pensei que ela seria, ela realmente... Será. Só ela. A vida. Sem mais. Livre de justificativas, de sinais do destino, e de interpretações sem sentido sobre coisas e pessoas que não existem somente na órbita do meu umbigo. A vida não é sempre um mar de rosas ou um por-do-sol cinematográfico, mas também não é só nuvens negras, azar, zoeira e tempestade infames. A vida é só a vida. Às vezes coisas boas acontecem, e às vezes coisas ruins acontecem. E entre uma coisa e outra, às vezes chove.
   Existencialistas dirão que preciso rever meu projeto original. Psicanalistas dirão que eu preciso ligar para a minha mãe. Comportamentalistas dirão que eu preciso reavaliar meu repertório. Leigos não dirão nada, porque não perderam tempo em ler isso. E quanto a mim, eu só espero aprender de uma vez por todas que a vida jamais será do jeito que eu quero, tampouco é do jeito que eu a vejo. Sem definições, parâmetros ou padrões. Ela só é, e isso é bom. E eu só espero também que amanhã não chova. Ou que chova, tudo bem.

   Pela primeira vez em muito tempo, eu não preciso acordar cedo...

Comentários

  1. "Era a tempestade perfeita, porque pela primeira vez eu estava fora dela." Não me considero, psicanalista, existencialista e tão pouco leiga, pois compreendo e de fato me identifico com cada palavra descrita.

    Encantador como sempre!

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