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A resiliência do quilômetro 157 (final)


   Antes que meu pai pudesse retomar seu sermão, uma Honda Biz surgiu rapidamente e desacelerou até chegar perto de nós para perguntar se ele era o Marcio sobre o qual o Gaúcho tinha falado. Era o Augusto, armado com sua caixa de ferramentas e maior disposição para ajudar do que o último mecânico. Ao contrário dele, Augusto era quieto e pacato, e analisou as peças do motor com as mãos até concluir que aquela vela tinha concerto sim – era só usar a chave certa, que por acaso tinha ficado para trás na oficina. Augusto montou de volta na moto e avisou “volto já!” antes de desaparecer no horizonte da estrada.
   A essa altura já deveria ter passado cerca de uma hora. Não acompanhei o tempo da nossa parada não planejada no relógio, porque estava mais preocupado em matar os borrachudos que tinham conseguido entrar no carro antes que eu o fechasse para me refugiar. Quando vi que as coisas não ficariam mais fáceis do lado de dentro do carro, saí novamente e comecei a andar aleatoriamente em círculos, impaciente pela volta do Augusto, enquanto meu pai pôs-se a caminhar novamente pelo acostamento. Provavelmente estava distraído, porque não viu quando um trator apareceu na entrada do sítio ao lado da árvore solitária, em direção à estrada, e seu motorista começou a falar comigo, inexplicavelmente com outro sotaque carregado, só que desta vez, indecifrável:

- Oxê, o carro de vocês deu problema?
- Deu, deu sim. Mas já fomos socorridos. Apareceu um mecânico, depois que um outro motorista parou para nos ajudar. Enfim, longa história. Mas já estamos bem, obrigado!
- Ah, tudo bem, então. Precisando de alguma coisa, é só descer até o meu sítio ali em baixo. Meu nome é Souza, viu. Agora me dá licença que preciso ir encontrar um tal vendedor que ficou de me mostrar umas peças de trator e até não apareceu até agora.
- Na verdade, foi com ele que a gente falou. Ele foi por ali – e apontei para o horizonte, como quem queria ajudar de alguma forma para retribuir a quarta oferta de ajuda que recebemos desde a parada brusca.

   Pouco depois do Souza também desaparecer no horizonte da estrada, meu pai voltou a caminhar pela minha direção e nem reparou que eu estava conversando com o motorista do trator, que por acaso era o Souza que o Gaúcho estava procurando antes de parar para nos ajudar através do Augusto. Foi aí que eu finalmente parei para perceber o quanto estávamos sendo ajudados por pessoas desconhecidas, enquanto eu ainda achava complexo demais pedir ajuda dos meus amigos, dos meus pais, ou até de me atrever tentar algo a mais com aquela garota. E o quanto minha desabilidade de transformar coisas pequenas em problemas já tinha passado do ponto de ser considerada uma simples neurose, para ser algo realmente problemático.
   Enquanto eu ligava os pontos da minha própria irreverência, o Augusto apareceu de carro acompanhado pela sua esposa, que ele logo justificou ter demorado para voltar porque precisava buscá-la do trabalho dela. Foram questão de minutos para que o Augusto resolvesse o nosso problema com o apertar de uma chave na vela, cobrasse menos do que eu esperava que ele poderia pedir pelo serviço e pelo transtorno, e nos colocasse de volta na estrada. Alguns poucos metros de volta em nossa viagem, fui obrigado a admitir derrota:

- Ok, você tem razão.
- Sobre...?
- Sobre o que nós estávamos falando antes.
- Que era...?
- Sério mesmo, pai?! Por que será que eu sou assim, né?!
- Ok, brincadeira. Diga aí.
- Não é questão de precisar das pessoas, nem de garantir liberdade, nem de me sentir melhor sozinho. Talvez seja o medo de acabar preso com uma vela enguiçada em um acostamento improvisado no meio do nada. Talvez seja o medo de investir na pessoa errada de novo. Ou então, talvez seja o medo de não saber para onde eu estou indo, e de querer poupar outras pessoas de se perderem comigo.
- Quanto drama, filho. Não precisa disso tudo. Apenas viva sua vida de um jeito que te traga alegria, e compartilhe isso com as pessoas que você gosta de ter por perto. E namore uma garota de quem você realmente goste, e não te faça ficar questionando essas coisas. Se você está pensando tanto nisso, talvez não seja ela. Mas talvez possa ser se você der uma chance. Eu também não sei. Não sei tudo. Só sei que não adianta a gente ficar só querendo ser feliz. Às vezes a gente precisa tentar algo a mais. E se der errado, eu vou estar aqui para te ajudar. Os seus amigos também. E pelo visto ainda existem pessoas nesse mundo dispostas a fazerem o bem também. Os Gaúchos e os Augustos por aí.
- Ok, pai, você tem razão. Obrigado.
- Obrigado, nada. Faz um favor pra mim. Pega o meu celular aí e liga para aquele número de 0800 de novo.
- Ué, por que?
- Pra cancelar aquele guincho. Se me lembro bem, tem que teclar 1 no primeiro menu que aparecer, e esperar alguém te atender. Mas sem pressa, né? Ainda tem muita estrada pela frente.

   Entre imprevistos, enguiços e 110 músicas daquele pen drive depois, nós finalmente chegamos em Londrina. Eu disse ao meu pai que aquela provavelmente foi a melhor viagem que nós já fizemos, e prometi a mim mesmo que faria aquela experiência contar para alguma coisa. Que eu iria tentar mudar algumas coisas, para realmente tornar essa promessa de ser feliz e viver bem em algo real. E que se por acaso eu acabasse preso em um acostamento nos arredores de Campo Mourão de novo, eu já tinha o telefone do Augusto salvo no telefone.

   É. Eu vou ficar bem.

Comentários

  1. Em meio a correria do trabalho, abro o link do seu blog com a intenção de ler uma postagem e seguir em frente com a rotina, mas isso se torna um problema a partir do momento em que fica difícil simplesmente ler um paragrafo ou alguma palavra curiosa que me chamou atenção no texto porque simplesmente começo a ler e não consigo parar.

    Congrats writer.

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  2. E digo mais, admiro a sensibilidade e coragem dos seus textos, ao usar situações ocorridas contigo, demonstrando de uma forma poética e ao mesmo tempo irônica que mostra claramente sua incrível subjetividade.

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