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O deslocamento


Eu já pensei em absolutamente todas as teorias para tentar entender porque você foi embora. Talvez eu tenha sido “eu” demais, com minhas manias incorrigíveis, meus dramas épicos e minha ansiedade desenfreada. Talvez você tenha conhecido outra pessoa – alguém do seu passado, ou simplesmente alguém novo, presente e menos “eu” o bastante para te agradar. Talvez a graça da novidade tenha se dissipado com o passar dos dias, como se a rotina tivesse tornado a paixão rarefeita e à mercê dos ventos do inverno. Ou talvez, quem sabe, na pior das hipóteses e encarando o maior dos meus medos de hoje em dia, você simplesmente não estivesse disposta a ter um relacionamento. Completo com todas as manias, dramas e ansiedade que o acompanham.

***

Eu não queria escrever sobre isso. Juro que não queria. Mas eu não consigo parar de pensar em você, Fulana. Não consigo deixar de me preocupar contigo, e de imaginar como seria bom tê-la em meus braços de novo, e sussurrar que tudo ficará bem. E já faz dias que penso sobre o mais posso dizer, o que mais posso escrever, que me leve de uma vez por todas para longe de você e rumo ao meu próximo desengano – já que esta parece ser a pauta recorrente de 2017. E então eu me peguei pensando em uma nova teoria, recém formulada, que talvez explique porque você se foi e, inclusive, porque eu não deveria mais pensar sobre isso. E não tem nada a ver com a sua teimosia, ou sua infantilidade, ou sua intransigência. Até porque, se você estralasse os dedos, eu estaria de volta aos seus pés. E o pior: eu estaria feliz por isso. E foi aí que eu comecei a pensar, enfim, no verdadeiro vilão. O deslocamento.

***

A parte mais difícil de um relacionamento – qualquer relacionamento que seja – é e sempre será o deslocamento. E não estou falando dos clichês sobre andar de mãos dadas no shopping e seguir adiante, juntos, pela vida afora. Não. Estou falando de uma jornada mais intrínseca, impiedosa e insensata do que a dor e a delícia de uma vida a dois: a dor e a delícia de ser um só, e de se entregar ao outro para que possam, então, ser dois. E a magnitude envolvida no deslocamento é e sempre será o que desmotiva qualquer um a tentar algo com qualquer outro.

Porque eu tenho uma vida aqui, entende? Uma que existe bem antes de eu descobrir que você estava por aí. E que tem muitos, mas muitos problemas no dia a dia, que se misturam na correria da semana e que sempre me destroem a ponto de me motivar a ficar deitado, escondido da cama, vendo todas as oportunidades e experiências novas passarem por mim.

Viver é cansativo. É acordar às seis e pouco da manhã pra tomar uma ducha e um café rápidos, porque se eu parar pra pensar sobre como seria bom ter você dormindo ao meu lado, eu vou me atrasar e perder meu ônibus para o trabalho. E se eu perder o primeiro ônibus, vou perder o segundo, e o terceiro, e lá se foi toda a segunda-feira. Que chances eu tenho de recuperar o meu bom humor ao longo da semana? Sem falar que estamos no fim do mês, e mais uma vez tem mais dias do que dinheiro sobrando aqui. O que eu vou almoçar? Tem algum lugar perto daquela lanchonete em que eu posso passar pra pagar aquele boleto? Mas eu trouxe aquele boleto comigo? Não, ficou em cima da mesa, perto do café. Como faz pra emitir uma segunda via? Tem que se cadastrar no site?! Meu Deus, que empenho. E essa hora que não passa?

Entre trocas de ônibus, horários a cumprir, trabalhos a serem feitos, aulas que não posso perder, amigos que preciso rever, familiares que preciso cuidar, mensagens que devo responder e contas que preciso pagar, eu pensei em algo essa semana. Eu não estive ignorando a sua existência e sofrendo sozinho pela lembrança do seu beijo de propósito; eu só estava ocupado demais para sofrer por você. E quando eu finalmente decidi colocar a minha sofrência em dia – relendo tudo o que você escreveu, revendo todas as fotos que postou, e relembrando todas as vezes que passei por você nesse último mês – eu descobri algo incrível: a Fulana cuja falta ando sentindo era bem mais interessante do que você. E não há absolutamente nada que eu possa fazer sobre você ter ido embora. Assim como não há nenhum sinal escondido no fato de que – ironicamente – nós ainda iremos nos encontrar todos os dias.

É difícil manter um emprego, uma faculdade, uma casa organizada, uma família feliz, uma gata de estimação satisfeita com o tanto de comida que tem no potinho de ração dela, e os cadastros em dia para conseguir emitir a segunda via de um boleto quando necessário. Envolve empenho, comprometimento, e muito, mas muito amor por tudo para continuar seguindo adiante. Agora imagine um relacionamento no meio de tudo isso: alguém com medos, vontades, inseguranças, opiniões e compromissos totalmente diferente dos seus. E quando eu parei pra pensar no que realmente significaria estarmos juntos, você e eu, eu percebi o quanto somos diferentes.

Bom mesmo seria passar por você todos os dias, sem eu precisar me deslocar para qualquer outro lugar. Você já estaria no meu caminho. Que maravilha!

Então, eu entendi. Relacionamentos envolvem deslocamentos. Envolvem abrir mão, em parte, de quem você é e dos compromissos que você julga tão importantes, para dar espaço à outra pessoa com quem você queira viver junto. E me contentar com alguém pelo simples fato dela já estar no meu caminho não é nenhum sinal cósmico ao qual eu devo me apegar.

Obrigado, meu bem, por ir embora, porque eu não seria capaz de deixá-la. Obrigado por me mostrar, todos os dias quando eu a reencontro, que conveniência não é um pré-requisito para o amor. E se eu quiser mesmo encontrar amor de verdade, terei que ir além. Começando por sair da minha zona de conforto, até enfim ser capaz de deixar eu mesmo de lado um pouco para que mais alguém consiga viver aqui.

Pela primeira vez, no último mês, sinto que estou de volta à direção certa.

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