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A dor maravilhosa



Esta é uma história sobre ironia. Claro, outros gêneros literários também ilustraram alguns capítulos: uns foram romances, outros foram aventuras, boa parte foi repleta de suspense, e a maioria não passou de thrillers psicológicos... Mas em se tratando de definições, nada faz tão jus à vida que passou por mim, a que está ao meu redor, e provavelmente a que ainda está por vir, do que a ironia. Infame, indiscutível, impiedosa ironia. E como já é de costume, a moral da história só se torna clara quando chega ao fim. Por isso só é engraçado para mim agora quando digo que, depois de anos de piadas de mau gosto e comentários sarcásticos jogados ao vento, posso dizer com certeza o seguinte: estou morto por dentro.


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Se você ainda não conhece a história, bom... O que exatamente está fazendo aqui? Eu não escrevo devaneios independentes há anos. Isso é uma história recorrente, assim como a vida ao redor dela. E tão quanto a vida, é necessário manter-se atento e ciente do que já aconteceu. Descobrir o que tudo significa é o que nos leva adiante. Quebrar a cara quando a equação das expectativas não bate com a realidade, faz parte. De qualquer forma, em algum nível, você me conhece. E se me conhece, sabe como vim parar aqui. Agora, se essa é sua primeira visita, talvez seja melhor escolher algo do arquivo, porque nada fará sentido para você. Não que por acaso faça sentido para meus três ou quatro leitores, mas é diferente – eles já estão acostumados.


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Julho de 2015. Foz do Iguaçu, Paraná. Sem saber ao certo por onde começar minha vida nova, fez sentido tentar consertar alguns erros do passado. Desde os metafísicos, como tentar encontrar um rumo profissional a seguir, aos de fato físicos, como parar de postergar uma ida ao dentista. Eu sei que existe algo a ser dito sobre a justaposição envolvendo “abandonar” a psicologia em Cascavel para tentar retomar o jornalismo em Foz do Iguaçu e, ao mesmo tempo, sofrer com uma dor de dente. Algo envolvendo uma interpretação acerca dos estudos de Freud sobre anomalias na fase oral do desenvolvimento psicossexual, e uma piada sem graça sobre passar os últimos cinco anos estudando para, no fim, dizer que preferia ter estudado outra coisa. Independente do que fosse, eu só precisava deixar de ignorar a dor no meu dente.


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Alguns dias após a mudança, minha primeira consulta trouxe contexto à minha dor. A física, não a emocional – ainda. Tratava-se de uma restauração quebrada em um molar, que deu abertura para uma carie que, por sua vez, teve tempo suficiente para alcançar o nervo do dente. A solução era simples, cara e dolorosa: um tratamento de canal. A essa altura vale registrar o que digo há três anos: embora eu não seja uma pessoa boa, e deseje ativamente o mal para muita gente, eu definitivamente não desejo a eles um tratamento de canal. Sempre fui adepto a tortura psicológica, por mais que ainda digam que “abandonei” meus estudos.


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Doeu. Mais do que eu esperava. Mais do que eu imaginava ser possível. E o resultado, como qualquer dentista pode confirmar, foi de acordo com os procedimentos padrões. O tratamento de canal basicamente consiste em matar o nervo do dente – e, consequentemente, o dente inteiro – restaurando sua superfície para manter a normalidade dos processos orais. A fala não é alterada por um dente a menos, mas convenhamos: o tempo gasto para rebater as piadas de mau gosto sobre ter um dente a menos, é um revés considerável.

Esse é o momento em que você se dá conta da piada infame que faço há anos, recentemente no primeiro parágrafo desse texto. Estou, literalmente, morto por dentro. Em parte, mas estou.



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Enfim, esse é o outro famoso momento de cada post – aquele em que você se pergunta: “porque estou lendo isso?”. Questionamentos filosóficos à parte, desta vez eu não senti dor, mas muita ironia por ter de procurar um dentista novamente quando a mesma restauração cedeu aos maus tratos da minha alimentação desbalanceada. Três anos depois de chegar à Foz, com uma bagagem cheia de traumas psicológicos e planos de transformar meu hábito de escrever demais em uma carreira jornalística, eu voltei ao dentista com o mesmo problema. O diagnóstico, no entanto, foi diferente dessa vez: não havia dor porque o dente já estava morto, bastava apenas restaurá-lo de novo. A única ressalva foi de tomar conta da alimentação pois, de acordo com minha nova profissional bucal, restaurações não tendem a durar três anos. “Não sei como durou tanto tempo”, ela disse, parecendo até referir-se ao meu tempo em Foz. Ou talvez fosse só eu, desgastado por ficar com a boca aberta durante uma hora, aos sons das brocas dentárias destruindo o que restava do reboque antigo para dar lugar ao novo. E mesmo com as garantias de que eu não sentiria a mesma dor de antes, de nada serviu para os meus nervos metafísicos. 


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Estou, em parte, morto por dentro. Este é o fato. Talvez eu tenha chego parcialmente morto em Foz do Iguaçu, e estou à procura de restaurações desde então. Talvez nada irá doer do mesmo modo que os primeiros dias em uma cidade nova doeram. Talvez haja mesmo algo a ser dito sobre a relação entre um procedimento oral e uma carreira baseada em redação ao redor de falas alheias. Talvez meus estudos anteriores nunca serão realmente “abandonados”, enquanto eu ainda for capaz de enxergar o potencial psicossomático em cada sintoma que surge em mim, desde os físicos até os metafísicos. Talvez a melhor interpretação para aquela dor, e o motivo pelo qual eu jamais irei senti-la de novo, simplesmente tenha a ver com crescimento. A maturidade de sentir a dor maravilhosa por abrir mão de algo que levou anos para ser construído, em prol de uma vida que eu falei em voz alta que não queria, quando ainda era novo demais para saber sequer quem eu era. 


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Eis um parágrafo à parte para você, que chegou agora, e por acaso decidiu ficar um pouco mais. Meu nome é Igor Costa Moresca. Aos 17 anos, eu saí de casa, de Londrina, para morar em Cascavel e cursar Jornalismo. Naquele mesmo ano, eu tranquei a faculdade e passei seis meses arquitetando um plano B, na forma de uma faculdade de Psicologia. Fui graduado em 2015 e, meses depois, percebi que o que amava mesmo era escrever, o que me levou à Foz do Iguaçu naquele mesmo ano. Em 2016, iniciei mais uma vez a faculdade de Jornalismo. Três anos depois da última mudança, cá estou eu: trabalhando na assessoria de Comunicação e Marketing do Parque Tecnológico Itaipu (PTI), morando sozinho com um diploma de Psicólogo, mais da metade da faculdade de Jornalismo concluída, um dente a menos e muita, mas muita vida pela frente. 


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Ao menos, essa é a minha conclusão, diante de três folhas do Word originadas por uma simples ida ao dentista. Talvez aquela consulta de anos atrás tenha sido marcante demais para deixar esse retorno passar em vão. Ou talvez aquela tenha sido uma dor entre tantas outras maravilhosas do meu crescimento, para deixá-las passar em vão. Como sempre, eu não sei. Talvez eu só fale demais, escreva demais, mude demais, pense demais, entre tantos outros exageros que cometo no meu dia a dia. Mas cá entre nós, eu também já estava sentindo a minha falta. Agora, aceita uma música?

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