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A rede antissocial


Fotos costumavam ser verdadeiros artefatos. Ao menos, durante a minha infância e adolescência, era assim que eu as considerava. Em um mundo recém aberto às tecnologias de captura e compartilhamento de imagem, onde câmeras digitais e álbuns do Orkut com limite de 12 imagens por pasta, a habilidade de retratar algo era tão importante quanto optar por qual imagem divulgar ao mundo. Não era uma operação fácil, difundida num piscar de olhos ou ao alcance da ponta dos dedos como é hoje. Em compensação, se Bauman estivesse vivo, certamente passaria seus dias gritando “eu avisei!” para todo e qualquer traço de modernidade líquida que cruzasse seu caminho.

Demorou muito para que eu tivesse uma câmera digital pra chamar de mim. Às vezes ainda demorava um pouco mais para que eu reencontrasse o cabo USB para passar as fotos ao computador, já que ele vivia perdido pelo quarto. Até então, os rolês da época viviam em torno da pessoa mais bem agraciada pelo capitalismo para tirar fotos da turma – só para ser assombrada desde o momento em que pisasse de volta em casa pelos pedidos dos colegas: “manda lá a nossa foto!”. Para a surpresa de ninguém, eu sempre fui esse colega. 

Pouco a pouco, rolê após rolê, eu cheguei às famigeradas 12 fotos necessárias para preencher um álbum. Bem a tempo do limite ser aumentado para 24. Eventualmente o Orkut permitiu a criação de vários álbuns, o que, por sua vez, abriu a porta para o caos imagético da internet atual. 

Quanto mais os meios e plataformas de imagens contribuíam para universo expandido da web, mais eu conseguia acompanhar. Isto é, até os celulares alcançarem a tecnologia. Em pouco tempo, todo mundo possuía uma câmera digital embutida no aparelho. Além de gerenciador de redes sociais, GPS, calculadora, agenda de contatos, calendário, leitor de arquivos, reprodutor de música, rádio e TV, o negócio ainda poderia tirar fotos em alta revolução. E rejeitar ligações de São Paulo entre um click e outro.

Diante do aumento das imagens, um novo sistema de oferta e demanda foi criado para avaliar quais fotos eram “melhores” que as outras. Consequentemente, as imagens com avaliações menores – ou, as que recebessem menos “gostei” do resto do mundo – invariavelmente impactavam o que estava retratado nela. De repente, fotos simples e seus significados perderam a importância em meio a publicações épicas, como fotos no topo do Monte Everest. Até mesmo fotos resultantes de efeitos especiais tomaram destaque, por mais que descreditassem lugares sagrados de povos remotos. Sem like, sem valor.

Minhas fotos raramente passam dos 20 ou 30 likes, porém jamais negaria minha participação neste sistema. O que seria dos meus domingos à noite sem o retrato da minha saudação à gourmetização enquanto assisto ao MasterChef Brasil? Queijos e vinhos à parte, sempre foi bom compartilhar a experiência – e ser reconhecido por isso.



A questão é: até que ponto isso é saudável? Ou quem sabe o questionamento, em meio aos tempos líquidos, seja outro: quantos problemas estamos dispostos a continuar propagando em nosso bem estar, em troca dos likes? Não é porque estou habituado a ter poucas reações que sou a favor da ocultação dos números alcançados pelas fotos no Instagram. Apesar dos comportamentos irracionais, neuróticos e distorcidos aos quais me entrego, eu reconheço o estrago e suas proporções. Quem nunca associou seu valor, ou o valor da sua experiência retratada, ao número de likes que alcançou, que publique o primeiro stories.

Nada disso significa que bons tempos eram os outros, com menos fotos e maior liberdade para sair por aí sem uma necessidade latente de publicar um check-in ou uma publicação-relâmpago, disponível apenas por 24 horas. É óbvio que os rolês dos anos 2000 que possuíam fotos sempre eram mais exaltados do que os passeios sem registro que vez por outra perderam-se na nossa memória. Somos um povo apaixonado por registros. Dos desenhos nas cavernas às lembranças do Facebook, criamos mecanismos para que a captura da nossa história torne-se cada vez mais automática. Talvez para que isso nos livre da responsabilidade de tirar uma foto para registro, e nos permita simplesmente curtir o momento. Eu não sei.

A verdade é que eu gostaria de viver alheio às redes, mas não sei se vivemos num mundo que permitiria este luxo. O mesmo mundo capaz de produzir aparelhos que vivem conectados à rede e jamais são desligados, admitira nossa renúncia ao regime digital? Ou seríamos esquecidos por tudo e por todos? Influenciadores certamente se sentem assim.

Estamos nos divertindo? Ou a rede nos tornou antissociais pelo excesso? O fato de eu compartilhar esse conteúdo pelo Instagram com certeza já diz muito, mas como os likes se foram, jamais saberei exatamente o quanto. Talvez seja melhor assim, por enquanto. Aproveite para dar um rolê por aí sem celular, mas cuidado para não se perder.


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