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A utopia das mãos dadas no shopping


É a última vez que falaremos sobre isso, eu prometo. Mas para quem costumava dizer que precisava acreditar que funciona, acho que agora eu só preciso acreditar mesmo que ele, o amor, existe. Mesmo que sua eficácia ou durabilidade seja deveras questionável.


E não é porque você se foi que o que tínhamos simplesmente acabou. Vão-se os amores, ficam os sentimentos. Esparramados no chão até que alguém crie coragem de levantar e reuni-los de novo. Na esperança de que possam ser oferecidos a outra pessoa de novo. Amor é como vinho derramado, se parar pra pensar. Você chora porque o perdeu, então respira fundo e abre outra garrafa. Não? Ok, longe demais, eu admito.


Isso porque não parece existir uma metáfora melhor do que as mãos dadas no shopping. Eu repito há anos sobre o sonho, o simbolismo e a simpatia envolvidos no menor dos gestos – as mãos dadas – no mais grotesco dos cenários – qualquer conglomerado de lojas de departamento iluminadas por luz artificial fluorescente, sonorizado por música ambiente abafada e geralmente indecifrável, que exista perto de você. Porque amor é o que se sobressai entre as ruínas, e nada é mais sobressalente do que um pequeno toque de afeto no mais inóspito dos espaços.


Pense na última vez que vivenciou esse momento. Consegue se lembrar de tudo pelo que passou para chegar até ali com ela? Sequer sabe dizer o que estavam fazendo ali, para onde estavam indo, ou se questionou sobre o que tudo aquilo representava? Provavelmente não. Mãos dadas são proporcionalmente fadadas à semiótica, mas alheias à análise presente. Só nos lembramos das mãos dadas igual a tudo na vida: quando se desfazem


Mãos dadas representam união, estabilidade, parceria. Mãos dadas no shopping elevam a experiência a outro patamar: significa que entre todas as pessoas do mundo – ou o “mundo” aludido por pessoas à procura de liquidações fora de época ou ar condicionado gratuito – eu escolhi segurar a sua mão, tornar seus sonhos em realidade, caminhar do seu lado sem rumo até encontrarmos a vida que tanto esperávamos. Desde que a gente consiga descobrir primeiro onde fica mesmo a escada rolante.


Não é uma utopia porque é algo que acontece. Basta tirar o domingo para dar um rolê aleatório por qualquer galeria: mãos dadas estarão por toda parte. Acompanhadas por murmurinhos sobre não demorar muito ali porque precisam ir jantar na casa dos sogros em breve, ou sobre como precisam comprar um presente de aniversário atrasado para uma amiga, ou sobre dar um pulo na sessão de Casa & Cozinha daquela loja (você sabe de qual estou falando) porque precisam de um novo jogo de pratos. Mas parece uma utopia quando você tenta se lembrar da última vez que passou por isso. Ou da última vez que se sentiu mal por não passar por isso.


Encontrar alguém com quem andar de mãos dadas no shopping é tão complicado quanto achar uma vaga de estacionamento nele em horário de pico. Mas é um rolê pelo qual vale a pena investir, especialmente quando se considera o que há a ser ganho. A cumplicidade, o carinho, a casa para onde vocês retornam juntos em seguida. Tem algo especial nisso, é por essas e outras que nunca senti vergonha alguma na metáfora ou em viver à procura de alguém para dar o rolê. Mesmo depois de todas as vezes em que voltei para casa sozinho.


Pode ser arriscado, conflituoso, inquietante e demasiadamente intolerável, mas é avassalador, transformador e irresistível na mesma medida. Todos estamos sujeitos a abrir mão das nossas defesas pela chance de que o próximo rolê possa ser o certo. Talvez seja o mesmo motivo pelo qual shoppings, quando operam fora de uma escala pandêmica, nunca fecham. É o universo dizendo que a qualquer momento você pode escolher tentar de novo, nem que seja para abafar seu nervosismo em meio ao ar condicionado gratuito.


Não é a toa que os estacionamentos parecem viver em expansão. Às vezes tudo se resume mesmo ao quão acessível nosso coração realmente está. O que significa que, convenhamos, essa não será a última vez que falaremos sobre isso.


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