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Lembrete: o essencial é...

 


Dois lembretes me seguem há anos. Não metaforicamente. Seria abstrato demais para o que eu quero dizer, que já é simbólico o bastante. Fisicamente eu digo, na forma de dois post-its que já perderam sua cola há anos, mas seguem lutando contra o tempo à base das mensagens que carregam. E, claro, das tachinhas que os prendem ao mural de recados do meu quarto.

O mural em si também me segue há anos, por uma razão risível agora que finalmente parei para pensar. Ou, melhor dizendo: agora que parei para lembrar. Mas para fazer algum sentido para você, talvez seja bom explicar da onde a ideia dele surgiu. Se me lembro bem (o que é difícil mensurar a essa altura), foi uma ideia materializada em 2015 – o ano em que saí de casa de novo. É, de novo.

Eu tive várias partidas ao longo dos anos. De um apartamento para outro. De uma cidade para outra. De uma vida para outra. E em algum ponto desse trajeto, entre uma vida e outra, eu percebi (não pela primeira vez) o quão efêmero tudo pode ser. E o quão poderosa uma lembrança pode ser.

Não é à toa que a indústria de souvenirs segue plena, especialmente em tempos pandêmicos. Esses sempre foram as nossas tentativas de terceirizar a nossa memória, fixando-as no espaço como cápsulas do tempo, porém mais funcionais na prática. São as fotos, textos, chaveiros e músicas que nos transportam de volta ao momento que surgiram.

Nas tentativas e erros de nos salvarmos de nós mesmos – e nossas memórias falhas – surgiram os post-its. Pequenos pedaços de papel que, em seu auge, podem ser aplicados em diversas superfícies. É preferível mantê-los à altura dos olhos, como alertas constantes em rotinas incansáveis, para nos certificarmos de que nada sobre nós ficará para trás.

Mas como era de se esperar, algumas coisas sempre ficam. E com elas, parte de nós. É assim que nos movemos de uma vida para outra: esquecendo de lembrar dos pequenos detalhes, levando adiante apenas as grandes mobílias e a bagagem invisível, porém supostamente essencial – de acordo com um certo pequeno príncipe.

Aliás, você se lembra dessa frase como sendo mesmo parte do livro? Pode ter sido uma fala do Winston Churchill. Apostaria dinheiro no seu palpite? Essa é a questão: memórias são importantes, mas registros são mais ainda.

Enfim, sobre o mural. Foi uma iniciativa em meio a mais uma mudança de vida, onde eu manteria o essencial daquela vida passada à vista. Para jamais esquecer quem aquelas pessoas foram ou o que aquele lugar significou para mim. Nele haviam fotos de amigos, retiros, recados enviados por eles e lembretes criados por mim mesmo; tudo destinado a tornar aquela vida inesquecível, visto que minha capacidade para isto seria limitada sem um suporte visual.

Desde então, muita coisa mudou. Não só no mundo, mas no mural também. Amizades perderam o significado, recados perderam o sentido, tachinhas se perderam na manutenção do quadro e, como era de se esperar, post-its perderam a aderência. Nada mais simbólico para a nossa memória flutuante quanto um post-it perdendo sua capacidade de fixar-se no espaço sem antes concretizar sua função. Nossas intenções são sempre boas, mas nunca páreas para a procrastinação – a única a resistir ao teste do tempo.

Todas essas mudanças não necessariamente significam coisas ruins, mas é fácil ceder a esse impulso. Somos criaturas naturalmente preguiçosas, em busca de um lugar ao sol, uma zona de conforto, uma estabilidade plena e um celular (já conectado ao wi-fi) ao alcance das mãos. Qualquer outra coisa pode ser considerada supérflua se estiver fora desse escopo. Foi assim que nossa memória perdeu parte da sua força.

Ao aceitarmos nos transformar em seres imediatistas, dotados de opções em streaming ou delivery, o essencial – invisível aos olhos, segundo Churchill ou Saint-Exupéry – fugiu ao nosso alcance. E na falta de um suporte visual, automaticamente nos esquecemos dele. Restam os novos estímulos, configurados com notificações pop-up, sobressaindo-se a tudo que envolve um empenho além do que a internet das coisas pode proporcionar.

Se não mantemos em dia o exercício da terceirização da memória, não há registros para contar a nossa história. E não há pintura rupestre que se compare ao conforto de ler uma mensagem pela barra de notificações, sem deixar que o outro saiba que você já sabe o que ele quer que você saiba. O poder da informação está intimamente atrelado ao seu desequilíbrio hoje, ocupando os espaços que nós mesmos delimitamos em detrimento de outros artefatos arqueológicos.

O que nos traz de volta ao presente – e aos dois lembretes que sobreviveram ao tempo, ao espaço e ao meu desleixo. O primeiro diz:

Na vida você deve fazer o que gosta, senão acaba trabalhando


E o segundo diz:

Às vezes você precisa perder tudo antes de realmente conseguir se encontrar


Parando pra lembrar, percebi que esses nem são os lembretes originais. Ao ver que estavam levemente rasgados pelas tachinhas (que já estavam substituindo a aderência perdida), eu reescrevi os post-its em novos papeis e os prendi novamente ao quadro, reconhecendo sua importância e a ineficiência do adesivo.

É assim que a memória funciona: não basta apenas confiar que o essencial estará sempre em nossa mente. É preciso passa-lo a limpo sempre que necessário, para que sua importância continue clara para nós. Murais de recados não conseguem carregar esse peso sozinhos. O lembrete do essencial, já dizia Churchill – ou talvez tenha sido o Dalai Lama? – não cabe em um post-it. É um papel nosso: essencial, mas não invisível.

E eu espero não esquecer disso novamente tão cedo.




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