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O complexo do perrengue

Eu agora espero pelo momento em que a catástrofe da minha personalidade se torne bela de novo, e interessante, e moderna...

 – “Mayakovsky”, Frank O’Hara

É um bom indício dos tempos nos quais me encontro hoje, quando me deparo diante de uma página em branco sentindo-me mais ameaçado do que o de costume. Não mais pelo medo das palavras que possam vir a ocupar aquele espaço, mas pelo medo de que não tenha restado nada a ser dito.

Tempos de mudança, desequilíbrio e transtorno. Essa é a natureza da... bom, natureza. Não há corpo em seu estado presente que venha a permanecer dessa forma por muito tempo. Somos como os dias, os ventos e as dúvidas: em constante mudança, sem grandes esperanças. Mais do mesmo, de novo e de novo, até que o habitual recupere seu charme de outrora. O mesmo charme que nos atraiu a ele em primeiro lugar, e nos repeliu logo antes de partirmos.

Existem várias maneiras de (tentar) descrever as mudanças, e raras são aquelas que ainda não conhecem o interior de um livro, ou o canto empoeirado de um blog da década passada – assim como este inquestionavelmente possui. Mas quanto mais tento resistir às provas do tempo, mais infames se tornam os meus questionamentos. Sobre a vida, sobre o amor, sobre o amanhã.

Este não era o texto que eu tinha em mente ao decidir confrontar a mim mesmo por meio de uma página em branco. Mas após uma série de caminhadas rumo a lugar nenhum, essa parece ser a pauta do dia. Algo não tão diferente das lamúrias que já compartilhei por aqui, o que também não alcança nenhum novo nível de surpresa. O autor é sempre o mesmo, por bem ou por mal. O mundo ao seu redor, nem tanto. A verdadeira variável é a relação entre eles. Ou, como era de se esperar, a falta dela.

Ironicamente, quanto mais desconexo me sinto do mundo lá fora, mais claro se torna o caminho de volta a mim mesmo. E, claro, o mesmo pode ser dito sobre as vitórias que conquistei sem que ninguém soubesse, as oportunidades que vieram e se foram com a mesma instantaneidade, e os fracassos que, invariavelmente, são os únicos capazes de deixar cicatrizes visíveis aos olhos.

Não me leve a mal; essas não são as palavras de um perdedor, tampouco representam um discurso vencedor. Isto é sobre mudança: do tipo que se arrasta por meses, implode em dias e assombra por décadas.

Certa vez eu mesmo escrevi que mudanças, na falta de uma palavra melhor para descrevê-las, são boas. Suas finalidades podem não ser evidentes a priori, mas sempre preferi acreditar que há algum sentido a ser cumprido eventualmente – um que raramente se iguala aos nossos desejos.

Às vezes tomamos iniciativa o bastante para abandonar o status quo. Vez por outra, o mundo toma a decisão por nós. De um jeito ou de outro, todos estamos fadados ao complexo do perrengue, mas por um breve instante é possível determinar ao menos o tamanho do perrengue. Ou então, o quanto iremos nos permitir sermos atingidos pelo inevitável deslocamento.

O que me traz de volta à presente falácia e, quem sabe, talvez a mim mesmo também. Se há algo a ser aprendido nos últimos anos em se tratando de mudanças, é isto: nunca foi sobre a incerteza do que estaria por vir, mas sobre o desapego do que fica para trás. Esse é o real desequilíbrio.

É possível viver correndo em círculos até certo ponto, mas quando o mundo toma para si a decisão de que é hora de dar boas-vindas a algo novo, questione-se: o que você sentiu esse tempo todo foi mesmo medo do desconhecido, ou apenas preguiça do perrengue?

Leis da física à parte, um corpo em repouso permanece como está até o momento em que uma força irreprimível se choca com um objeto imóvel. Ou você assume sua força, ou é empurrado para frente. Não existe meio termo.

Pensando bem, talvez esse tipo de caos criativo fosse exatamente o que eu tinha em mente. Ainda é confuso e sequer retém o mesmo charme, mas é um processo. Estamos em obras; cuidado com os desabamentos na estrada.


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